Papas e teólogos sobre a necessidade de regulação financeira

Ilustração de um tipo de mercado não regulado em que há feroz propaganda de um produto.

A argumentação pela regulação Financeira, assim como as mesmas para o âmbito comercial e o âmbito trabalhista, foram muito atacadas por liberais do século XIX e o são pelos mais radicais mesmo no século XX e XXI.

A Santa Igreja sempre apoiou a regulação de qualquer tipo de mercado enquanto essa buscava uma ordem moral propícia à salvação das almas.

Bento XVI

“Tanto uma regulamentação do sector capaz de assegurar os sujeitos mais débeis e impedir escandalosas especulações, como a experimentação de novas formas de financiamento destinadas a favorecer projectos de desenvolvimento, são experiências positivas que hão-de ser aprofundadas e encorajadas, invocando a responsabilidade própria do aforrador. Também a experiência do microfinanciamento (…) há-de ser revigorada e sistematizada, sobretudo nestes tempos em que os problemas financeiros podem tornar-se dramáticos para muitos sectores mais vulneráveis da população, que devem ser tutelados dos riscos de usura ou do desespero. Os sujeitos mais débeis hão-de ser educados para se defender da usura, do mesmo modo que os povos pobres devem ser educados para tirar real vantagem do microcrédito, desencorajando assim as formas de exploração possíveis nestes dois campos.”

(Caritas in veritate, Retirado 10/2/2024: https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20090629_caritas-in-veritate.html) junho de 2009, 65)

Venerável Pe. Dehon e a necessidade da regulação financeira já em 1895

“2 – As especulações e os jogos de bolsa

Os jogos de bolsa e os mercados a prazo dão ocasião a revoltantes injustiças. Os ingênuos, que jogam de boa-fé contando com a sua pequena habilidade, só a si mesmo fazem mal, desbaratando a maior parte das vezes os seus haveres. Cometem o pecado do jogo e não o da usura.

Mas os habéis só jogam pela certa. Ou sabem as noticias que hão de influir sobre a bolsa; ou fabricam essas noticias; ou ainda, pela quantidade de titulos de que dispõem, têm facilidade em provocar a alta ou a baixa por vendas e compras habilmente combinadas.” (Tradução própria de “L’usure au temps présent – étude sur l’usure au double point de vue de la morale et de l’économie sociale”, Ven. Leon Dehon, Supérieur des Prêtres du Sacré Coeur de Jésus, de Saint-Quentin, No. 33, 1895. p.48)

“É necessário tolerar os interesses moderados do dinheiro e combater os excessos de uma sociedade capitalista.

“128 (…) quais são as principais causas dessa situação desastrosa? Eis algumas:

a) Em primeiro lugar, há os grandes empréstimos estatais [N.E.: títulos públicos], que favorecem a vida sem trabalho e fornecem enorme alimento para o comércio de dinheiro. Isso é algo novo, e os séculos passados não viram empréstimos tão exagerados e injustificáveis, que impõem encargos esmagadores aos contribuintes, ao mesmo tempo em que abrem caminho para a falência dos Estados e dos rentistas.

b) Em segundo lugar, há a liberdade ilimitada concedida por lei aos mercados futuros e à especulação. A Bolsa tornou-se um fantástico antro de jogos de azar, onde bilhões são jogados fora

c) Ainda existe a prática atual das sociedades anônimas com o abuso de emissões de títulos indefinidos, o que corresponde ao abuso de títulos do governo.

d) Existe a prática de abrir empresas [N.E.: IPO, na sigla financeira] e emitir ações sem supervisão ou regulamentação legal.

e) Há a tolerância por parte dos tribunais com relação à monopolização da alta finança e aos desvios e fraudes dos quais participam parlamentares.

f) Há, enfim, a invasão crescente de judeus apaixonados pelo comércio de dinheiro e que não têm nenhum escrúpulo sobre os meios pelos quais agem para engordar suas fortunas.” (Idem, p. 82ss)

Conclusão

Como se sabe, muitas das observações do Venerável Dehon foram postas em prática, tornando-o uma “voz clamando no deserto” de seu tempo.

Só é preciso dizer que regulação financeira devia ser acompanhada por regulação comercial e de propaganda, o que inclui toda “oferta de trabalho”. Nesse caso, fala-se da socialmente danosa propaganda de vagas falsas que só aparentam querer aumentar o banco de currículos da empresa e acaba por gerar efeitos psicológicos maléficos para as famílias e pessoas buscando emprego, contribuindo para a formação de desalentados e desesperança na sociedade.

Retirada e inserções em artigo sobre a mutação monetária legal não-emergencial.

Aos leitores informo que retirei do “Bíblia, prelados e teólogos contra a mutação monetária legal não-emergencial” (https://economiaescolasticacatolica.wordpress.com/2022/08/13/biblia-prelados-e-teologos-contra-a-mutacao-monetaria-legal-nao-emergencial/) a seção 5: “Proposta para eliminar a mutação monetária maléfica global”.

Esta seção fará parte de um artigo separado em economia aplicada. Não considero as objeções nem corpo do conteúdo como falhos, só noto que para uma proposta internacional elas podem exigir maior ponderação, principalmente em relação à noção do que será valor na nova moeda internacional e a passagem disso por mais objeções.

Ademais, mudanças têm sido feitas na página de sumário do site, a qual se dividirá em parte aplicada e teórica. Teoria sem prática é inútil, afinal.

Em sublinhado, os acréscimos no artigo repostado (original de 2022 aqui):

***

3.1. Objeções à 3 (Conclusão e casos excepcionais de permissão à mutação monetária) e suas respostas

….

Objeção 4: os casos excepcionais não contam com a inflação de demanda, isto é, quando o produtor aumenta seu preço por pressão da demanda (que pode ocorrer por múltiplos fatores) exigindo sua solução pelo aumento da oferta monetária, tudo o mais constante, pelo poder soberano.

Resposta à 4: a inflação de demanda nada mais é que a procedência da inflação pela demanda, ou seja, não diz nada sobre sua causa. Querer sanar a inflação de “demanda agregada”, quando sequer se conhece por inteiro a tal “demanda agregada” é querer inventar um problema para criar a solução. O conceito de “demanda agregada” é uma ficção de economistas sedentos para encaixar tudo em modelos, matemáticos ou não. Assim, na prática serve para obscurecer as verdadeiras causas da inflação. Mesmo assim, se houvesse uma causa qualquer para a inflação de demanda, seria uma enorme injustiça com o povo aumentar o numerário naquele local onde se supõe que haja mais demanda, pois ao longo do tempo, dada a complexidade das trocas e sua frequência em toda a nação, que só Deus conhece, aquele aumento de moeda pode ter seu peso recaído em famílias no extremo canto oposto do país, e já vivendo na penúria. Mutatis mutandi, o mesmo se aplica à deflação maléfica, que costuma afetar um menor público, os produtores. Num país verdadeiramente católico, deve haver caça policial aos que deturpam a quantidade do numerário nacional, assim como há perseguição policial aos homicidas.

(…)

Porém, socialmente falando, o que se chama em economia monetária de inflação ou deflação devia ser o seguinte: o impacto social da mudança monetária, o qual pode ou não ser sentido.

5.1. Objeções à 5 e suas respostas.

Objeção 1: inflação se define como o aumento no nível geral dos preços, e deflação, uma diminuição no nível geral dos preços. Não é um aumento qualquer, portanto, tampouco algum “malefício social”.

Resposta à 1: uma mutação (aumento ou diminuição) generalizada no nível de preços não é uma boa definição da mutação monetária pelo seguinte exemplo: se em um determinado país todos os habitantes tivessem dobradas sua quantidade de dinheiro em moeda nacional e tivessem a ciência de que isso ocorreu a todos, nada haveria, ou melhor, todos só passariam a usar a moeda como unidade de conta modificada, perdendo-se tempo somente para se ajustar à nova unidade de conta. Isso já o filósofo do iluminismo escocês David Hume argumentava em outros termos, embora se atribua também ao economista Cantillon, daí o nome Efeito Hume-Cantillon.

….

Objeção 4: o impacto social da mudança monetária não é uma boa definição de mutação monetária, pois um impacto que não se pode quantificar resulta em uma nova metodologia econômica que saiba ou estime o quanto de moeda foi entesourado, por quem, para quê e por qual razão.

Resposta à 4: mudar a metodologia econômica reinante na academia é uma das principais metas da Economia Escolástica Católica, que é humilde o suficiente para dizer que certos eventos são muito complexos para serem previstos ou quantificados. Quanto ao entesouramento, isso é um fato e bem antigo, uma vez que foi descrito pelo nobre escocês James Steuart Denham (1713-1780). Pode ser chamado de entesouramento Steuartiano ou exceção Steuartiana, pois é uma possível exceção ao efeito Cantillon-Hume. Quem recebe o dinheiro novo primeiro pode, invés de gastá-lo, entesourá-lo para outros fins. Assim, taxa compulsória de reserva bancária a 100% não significa o fim da inflação, porque o dinheiro anteriormente inflacionado pode ter sido entesourado. Eis a razão pela qual usar só uma moeda estrangeira (como a dolarização) é entregar a soberania monetária a quem, só Deus sabe, entesourou. Supondo características físicas distintas e a segurança contra falsificadores, uma moeda nova resolve. Por isso também, à medida que toda moeda é digital, é complicado haver soberania monetária (já que a moeda se reduz a bits que talvez possam ser manipulados pelo avanço tecnológico dos computadores).

Frases falsas sobre a moralidade católica ante produtos, contratos e instrumentos financeiros atuais. Citações de Papas, Bíblia, etc

A pedido, analisa-se as frases oriundas das mais comuns falsas concepções acerca da moralidade nos principais produtos e instrumentos financeiros no mercado, especialmente os que dizem respeito ao tema da usura.

Se, por um lado, pretendi fazer uma análise moral disso, não almejo ser supremo juiz católico nessa matéria, que compete à hierarquia eclesiástica. Por isso, citei o quanto pude aos documentos católicos.

Não serão vistos os produtos e serviços fora do âmbito regulatório do Sistema Financeiro Nacional ou SFN (Bacen, CVM, etc). Tal abordagem, pelo menos em português, é inédita. Geralmente só se ensina conhecimentos bancários e do mercado financeiro sem nenhuma base moral.

Como dizia o católico Marquês de la Tour-du-Pin la Charce: “Deter a usura é curar a gangrena da Economia Social moderna”. “Empêcher l’Usure, c’est guérir le chancre de l’économie sociale moderne.” (Vers un ordre social chrétien, p. 85)

– Frases falsas oriundas de concepções imprecisas acerca da moralidade católica ante produtos, contratos e instrumentos financeiros atuais

“Quem toma empréstimo com usura ajuda a usura”

S. Tomás, Suma Teológica II-II, q. 78, art. 4 (tradução de Alexandre Correia): “devemos dizer que de nenhum modo é lícito induzir outrem a dar dinheiro a título de mútuo, sob a condição de lhe pagar usura. É-nos lícito porém recebê-lo nessas condições, de quem estiver pronto a fazê-lo e tiver disso a prática, tendo nós em vista a satisfação de uma necessidade nossa ou alheia. Assim como é lícito ao que caiu nas mãos de ladrões exibir os bens que traz consigo e deixá-los cometer o pecado de roubo, para não ser morto por eles, seguindo nisso o exemplo dos dez varões que disseram a Ismael: Não nos mates, porque temos no campo tesouros (Jr 41, 8), como se lê na Escritura.”

“Nada do que o Banco Moderno faz é usurário”

Reserva fracionária é o depósito irregular rejeitado pelo direito romano. O que o paganismo rejeitou, o neopaganismo exaltou. Assim funciona o banco moderno: a moeda atual é criada pelos bancos privados com chancela do poder público.

Nisto consiste o depósito irregular: contrato para guardar em depósito um bem ou moeda e o guardador empresta o que foi guardado, ganhando ou não um lucro em cima disso.

Huerta de Soto, no seu livro “Moeda e ciclos bancários” (2013), mostra a vedação disso já pelo direito romano. Quando ressurgiu na decadência da idade média, sofreu críticas de quase todos os escolásticos tardios.

No caso dos bancos atuais, sempre se empresta o dinheiro alheio com lucro, o que é agravante moral. Posteriormente, Alfred Marshall, no século XIX, provou matematicamente como isso gera inflação. Suas fórmulas são ensinadas na academia, já a análise moral é há séculos olvidada.

Se houvesse seriedade no direito atual, quem emprestasse o que não tem seria julgado por depósito irregular (fraude no depósito, conhecido desde o direito romano), falsificação (anotava que tinha o que não tinha, criando dinheiro), e usura (cobrava pelo que não tinha direito algum, isto é, o dinheiro emprestado que fora criado).

Diz o Pe. Dempsey (The Functional Economy, The Usury element in inflation, Englewood Cliffs, N. J. Prentince Hall, Inc. 1958, p.435-436): depósito irregular emprestado cria inflação e esta gera “ganhos de empréstimos de mutuum por parte de pessoas e instituições que não pouparam e, portanto, não têm os direitos morais extrínsecos à compensação”.

Com o advento da reserva fracionária, tudo isso é legal. Como as leis da lógica continuam, dinheiro é criado e somos nós que sofremos com perda de poder de compra. O banco no conceito moderno tem este aspecto usurário: ele inexistiria sem a alquimia financeira da reserva fracionária.

“Trabalhar para banco é compactuar com a usura”

Não necessariamente, dependendo do que se faz num Banco, o qual presta serviços importantes à sociedade. Aliás, é o motivo pelo qual os amigos da mentira de que “a Igreja reconheceu o erro na usura” e amigos da especulação financeira desenfreada costumam criticar bancos sociais e públicos.

Bancos foram criados pelos cruzados, que tinham a força para proteger grandes quantias em seu poder, tamanho para ter agentes em todo mundo daquele tempo e habilidade para criar papéis bem únicos para comprovar a identidade dos clientes detentores desses mesmos tesouros. Hoje o banco possui ampla função social também, oferecendo, além de financiamento importantes diversos para empreendedorismo, a dinamização da economia popular mediante a aquisição e utilização de bens de capital importantes, casas, terrenos, etc.

“Juros compostos é usura”

Juro composto não é intrinsecamente mal ou em si mesmo usurário. Urge não cair em simplismo na análise da usura (vendo só se é juro composto ou não). Importa a natureza do contrato, especialmente.

Exemplo de juro composto legítimo: investir em ação, pois essa costuma ser reinvestida, gerando juro composto.

A usura continua a ser pecado. A Igreja disse somente que se podia pressupor título extrínseco num contrato de empréstimo, dado o avanço do comércio (impossível analisar a fundo todo empréstimo hoje).

Já o mundo islâmico, em geral, é preso à palavra e época do falso profeta Maomé, o que obriga a proibir todo juro como usura.

“Se é empréstimo para produção, tudo bem, se para consumo, não”

Sua mera diferenciação não faz com que o empréstimo seja legítimo ou não.

Bento XIV, na Vix Parvenit (1745), reconheceu que o juro não se devia à finalidade do uso do empréstimo (3, II). Antes S. Tomás também já argumentava assim (Super Sententiis, II, dist 37, a.6, ad 4).

“Títulos extrínsecos foram uma forma da Igreja reconhecer que não existe usura”

Uma coisa é o contrato de empréstimo e a exigência de juro só por ele, outra é a exigência de remuneração adicional por algum fator extrínseco, como notou o Cardeal Cajetano já no século XV.

Porém, conforme Aerts (2012, p. 47, La religione dell’economia, l’economia nella religione Europa 1000-1800), a partir do fim do século XII, era possível distinguir os seguintes títulos nas obras dos juristas:

Lucrum Cessans: lucro renunciado, quase o mesmo que o custo de oportunidade.

Periculum Sortis: risco de não recebimento no vencimento, ou inadimplência.

Damnum Emergens: dano sofrido pelo mutuante em razão do empréstimo concedido.

Poena detentoris ou poena conventionalis: penalidade pelo atraso no pagamento (conhecido como juros de mora hoje).

Stipedium laboris: pagamento pelo trabalho (algo como a taxa administrativa atual).

Titulus Legali: taxa legal emanada de um governo.

Bento XIV (1745) já reconhecera na Encíclia Vix parvenit: “3. Com isto, pois, não se nega que às vezes podem concorrer com o contrato de empréstimo alguns outros assim chamados títulos, não de todo atinentes ou intrínsecos à própria natureza do empréstimo; e que destes surja uma causa absolutamente justa e legítima permitindo validamente pedir alguma coisa a mais que o capital devido pelo empréstimo.”

Uma Instrução Vaticana de 1873 corrobora esta doutrina, ao dizer “1. Falando em geral, deve-se dizer, quanto ao lucro recebido por um empréstimo, que absolutamente nada pode ser recebido em virtude do empréstimo, ou seja, de modo direto e meramente por causa dele.

2. Receber algo a mais do capital é lícito se isso acresce ao empréstimo a título extrínseco, não comumente ligado e inerente ao empréstimo pela natureza do mesmo.

3. Faltando outro título, como, por exemplo, um lucro que acaba, uma perda que se produz, o perigo de perder o capital ou os esforços necessários para reencontrar o capital, o mero título da lei civil pode ser considerado como suficiente na prática, tanto pelos fiéis como por seus confessores, os quais portanto não podem inquietar seus penitentes a este respeito, enquanto esta questão permanece em julgamento e a Santa Sé não a tiver definido explicitamente” (Denzinger-Hunermann 3105-3109)

Além disso, muitas leis civis reconhecem o crime de usura, embora muitas vezes não tenham um claro conceito disso.

“Considerar o juro excessivo como usura é estender esse conceito, relativizando-o”

Juro abusivo sempre foi tido por usurário, mas a Santa Sé afirma a impossibilidade de ditar porcentagem ou limite máximo para todo o globo. A Autoridade Pontíficia reconhece isso ao citar fatores como circunstâncias, pessoas e tempo:

Instrução Vaticana de 1873 ao abordar o título extrínseco na prática católica: “4. A tolerância desta prática não pode ser estendida a ponto de declarar honesto um juro, por menor que seja, quando se trata de pobres, ou um juro desproporcional e excedendo os limites da equidade natural.

5. Finalmente, não é possível determinar de modo universal que quantia de juro deve ser considerada fora de medida e excessiva e qual deve ser considerada justa e moderada, visto que isso deve ser medido para cada caso particular levando em conta todas as circunstâncias de lugar, pessoas e tempo.” (Denzinger-Hunermann 3105-3109).

Código de Direito Canônico (1917, o Pio-Beneditino, Can. 1543) falando do mesmo em outros termos: “Se uma coisa fungível é dada a alguém em propriedade e deve ser devolvida posteriormente no mesmo gênero, nenhum ganho devido ao mesmo contrato pode ser percebido; mas na entrega de uma coisa fungível, não é ilícito em si concordar com um lucro legal, a menos que pareça excessivo, ou mesmo um lucro mais elevado, se um título justo e proporcional puder ser invocado.”.

“Pode-se pedir juros pelo valor do dinheiro no tempo ou por custo de oportunidade”

Este argumento geralmente é levantado por liberais de qualquer espécie. Há séculos foi aventado e repelido por S. Tomás de Aquino: “Mas não pode fazer objeto do contrato a retribuição pelo dano consistente em não auferir lucro do dinheiro; pois, não deve o mutuante vender o que ainda não tem e que pode ser impedido de muitos modos de vir a ter.” (ST II-II, q. 78, a. 2, ad. 1. Tradução: Alexandre Correia)

Inocêncio XI (1679) condenou a proposição também: “41. Dado que o dinheiro à vista tem um valor maior que o dinheiro disponível no futuro e não há ninguém que não atribua valor maior ao dinheiro presente do que ao futuro, o credor pode exigir, daquele que recebeu o empréstimo, alguma coisa a mais que o capital e sob esta alegação ser escusado de usura.” (Denzinger-Hunermann 2141, p. 533).

“O investimento que o banco faz com o meu dinheiro que ali investi não é problema meu”

Ao emprestar ao banco mediante algum tipo de certificado de que não sacará o dinheiro (ainda que legalmente falando o banco possa emprestar seu dinheiro parado), o investidor concorda, tacitamente, com a cultura bancária atual que envolve: 1. Poder pedir além do principal (colateral como casa, carro, etc), o que não é título extrínseco, 2. Emprestar com critério mais financeiro que moral. 3. Não ter escrúpulos em pedir uma taxa de juros abusiva que pode não ser combatida pelo poder público.

Assim, se não é necessariamente usurário, pelo menos não é o melhor investimento.

“Ações são usurárias”

Ações são uma parte da empresa. Quem nelas investe, investe por acreditar naquela empresa (ação é um pedaço dela). A economia verdadeira não olha para relações numéricas e sim para a natureza de cada contrato.

“Ações não são usurárias, mas empréstimos para empresas o são”

Empréstimos para empresas mediante títulos de dívida privada, o que geralmente surgem pelas espécies relacionadas ao prazo, como debêntures e nota promissórias, não são usurários. Justificam-se pelos títulos extrínsecos presentes e por tudo que foi dito antes.

“Não é errado viver de títulos públicos e não é errado ao governo a dívida pública contínua”

A dívida pública serve para saldar o déficit público. Devia ser emergencial meramente.

O venerável Pe. León Dehon (1895) respondia em seu tempo à questão “os empréstimos de anuidades perpétuas são justificados?”:

“- Não. É com razão que economistas sérios veem isso como um ato imoral. Pedir emprestado assim equivale a consumir os recursos do futuro com a fartura do presente. Qualquer dívida pública precisa ter sua amortização ordenada a um prazo que não seja excessivo” (Catéchisme Social, 1895, P. 42)

Nada mais distante da realidade econômica ocidental. Hoje só se fala do que rende cada título. Sendo a dívida não mais emergencial, muitos querem viver às custas do Tesouro Público.

Investir conscientemente em títulos públicos é saber que se empresta ao maior devedor e maior gastador nacional, o qual não raramente muda a perspectiva sobre o que fazer com esse dinheiro a cada eleição.

“Derivativos são usurários”

Instrumento financeiro cujo preço “deriva” de outro (ativo, taxa, índice, etc), eles geralmente, existem para várias finalidades. Para hedge, mecanismo que garante o preço futuro, por exemplo, de uma mercadoria agrícola sujeito a questões climáticas e de safra.

Porém, nota-se o que dizia o Ven. Dehon sobre o mercado à termo, que é bem antigo se se refere a mercadorias (“desde o desenvolvimento do comércio no século XIV”).

Quanto às operações sobre os valores, são estas “que provocam a desastrosa febre do jogo que reina à volta de todas as nossas bolsas e que se propaga até às extremidades das nossas províncias por meio da ação dos financeiros fraudulentos e de reclames enganadores. Para as mercadorias, à parte as operações a prazo que são feitas num fim sério pelos industriais e comerciantes, formou-se um mercado de jogo análogo àquele das bolsas de valores. Este jogo desenfreado mete a confusão no mercado. Certas legislações ou até mesmo os regulamentos de algumas bolsas de comércio puseram ordem nelas e não permitem a não ser que os mercados reais devam terminar por uma entrega de mercadorias.” (Pe. Dehon, Catecismo Social, 1898. C. XV, 4, 187)

Portanto, se se refere a mercadorias, não há o que se falar de ilicitude na compra e venda do produto financeiro em si mesmo.

“O swap, tipo de derivativo, é usurário ou pelo menos mera especulação por ser mera troca de índices financeiros distintos”

Há casos de justa proteção financeira no swap também. Exemplo de proteção cambial: importa-se mercadoria via um contrato com pagamento devido em moeda estrangeira daqui a três meses. Para se proteger contra uma desvalorização da moeda nacional em relação à estrangeira, o importador faz um swap financeiro com um banco.

Ambos concordam em trocar os pagamentos futuros em moedas diferentes: o importador pagará ao banco em moeda nacional a taxa de câmbio atual, e o banco paga ao importador em moeda estrangeira a taxa de câmbio acordada no contrato de swap. Assim, o importador tem mais previsibilidade sobre seus custos em moeda estrangeira e se protege contra possíveis perdas devido à variação cambial.

“Pode-se pôr um bem ou obrigação de fazer ao lado do empréstimo além do título extrínseco, cujo nome mais comum é colateral”

É certamente um dos contratos usurários e dos mais generalizados da modernidade, junto do juro excessivo ou abusivo.

Tomar bem ou vida alheia como forma de garantir o pagamento da dívida é usura, mesmo que não haja taxa de juros previamente acordada, porque o título extrínseco, por ser derivado do dinheiro, precisa ser quantificado em dinheiro.

“Vários clérigos, e dizemos o chorando, também entre aqueles que com voto e hábito se retiraram do presente mundo, enquanto aborrecem as usuras comuns, porque mais manifestamente condenadas, quando emprestam dinheiro aos indigentes tomam como penhor as suas posses e se apropriam dos provenientes frutos para além do capital emprestado.

Por esse motivo, a autoridade do Concílio geral decretou que, de agora em diante, ninguém que se encontra ordenado no clero ouse praticar este ou outro gênero de usura” (Denzinger-Hunermann 747, p. 289. Sínodo de Tours, iniciado 19 mai. 1163, Cap. 2).

No Brasil, atualmente são os equivalentes de garantias reais (as pessoais só enquanto não tornam outro um escravo ou devedor de garantia real)., embora isso possa mudar de nome de tempos em tempos, razão pela qual se exige termo latino.

A base bíblica disso está em Neemias V: “Depois de ter refletido maduramente, repreendi os grandes e os magistrados, dizendo-lhes: Porventura sois usurários para vossos irmãos?”

O que os judeus faziam com seus irmãos em necessidade? Faziam-nos empenhar bens para comprar comida e empenhar bens para tomar emprestado e pagar tributo. Por isso, diz Neemias em seguida: “Restituí-lhes hoje os seus campos, as suas vinhas, os seus olivais e as suas casas”

“A caderneta de poupança ou equivalente é sempre boa”

Tipo de investimento em renda fixa, a caderneta de poupança no Brasil possui vantagens legais, as quais incluem liquidez imediata, ausência de tributos, fundo garantidor de crédito caso o banco quebre (o banco pode quebrar, pois empresta mais do que possui em caixa para certas formas de contas e ganha em cima disso, o que se considera aqui usura).

Para uma análise moral, deve-se saber qual é a legislação vigente para o destino dos recursos da poupança. Se é puro empréstimo ao banco em troca de serviço, cabe a análise moral de como o banco escolhe emprestar. Se há criação monetária via empréstimo do que o banco não tem direito moral de emprestar (pois meramente guarda), é melhor buscar outro meio de poupar para desincentivar a tal criação monetária que a todos afeta se não se sofre exclusão financeira com isso.

A poupança é muito criticada pelo mercado financeiro pela baixa rentabilidade, mas há desconfiança, com razão, de outros produtos bancários, ainda mais sendo a exclusão bancária cada vez pior ao cidadão médio, e os agentes econômicos, cada vez mais dependentes de contas digitais.

Conclusão

Não só as finanças pessoais, como o próprio mercado financeiro perderá muito em qualidade enquanto não houver regulação pautada por princípios atemporais como os católicos. O conceito de usura é, hoje, muito mal compreendido e embolado pelas legislações do passado, já deficientes. Isso só perpetua injustiça e a gangrena na sociedade de que o Marquês Tour-du-Pin falava.

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Todas as citações do Denzinger-Hunermann: Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral da Igreja católica. Traduzido, com base na 40a. edição alemã (2005), aos cuidados de Peter Hünermann, por †José Marino Luz e Johan Konings, Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 2006.

Teólogos e economistas católicos sobre a dívida pública. Moralidade, lealdade e uso como investimento rotineiro nacional

Imagem revela: a questão da dívida pública causa desigualdade intergeracional

Sumário

– Conceito de dívida
– Dívida pública em contexto histórico dada a intelectualidade católica
– Teólogos
– Economistas laicos sobre o mesmo problema
– Resumo da concepção católica sobre o Título Público

– Conceito de dívida

Dívida possui um sentido amplo. Dívida de gratidão, dívida moral, dívida conjugal, a dívida que se fala no pai-nosso (sentido mais genérico que “ofensa”), etc.

No sentido econômico, a dívida analisada é a monetária. Aqui se trata da dívida do setor público ou dívida pública, ou seja, não se olha a dívida das empresas e nem a doméstica (dinheiro tomado emprestado pelas famílias). Ela se subdivide em:

  • Interna: dinheiro tomado emprestado pelo setor público
    • Com seu povo (mais comumente chamada de dívida pública, objeto deste artigo)

    • De entes subnacionais com outros, conforme a legislação nacional (dívida dos Estados com a União, etc)
  • Externa: idem à interna, mas tomada com o estrangeiro

– Dívida pública em contexto histórico dada a intelectualidade católica

Não foi sem atenção dos teólogos que no século XIX houve defesa do uso dos títulos públicos como meio de contínuo financiamento do governo, embora isso se tenha tornado realidade no século XX após a crise de 1929 nos Estados Unidos. Atravessara o século XXI e o título público era ainda, na propaganda, o “investimento mais seguro do mundo”, o “retorno livre de risco”.

Aqui estão as concepções morais e econômicas do título público pelos pensadores católicos da Economia, incluso a ideia de que é um investimento. Embora não seja um tema notado meramente por católicos, como se verá, textos assim foram organizadamente esquecidos já que, da metade do século XX em diante, torna-se realidade para muitas nações e de interesse aos poderosos que haja ignorância sobre o tema.

– Teólogos

Pe. Giovanni Botero (1540–1617) sobre o perigo dos temporalmente extensos empréstimos públicos

“Mas se as receitas não forem adequadas às necessidades, o príncipe pode pedir emprestado a súditos ricos, seja com juros, o que ele não deve fazer exceto em casos extremos, uma vez que os juros são a ruína dos estados, ou sem juros, o que não será difícil se o príncipe mantiver sua palavra e pagar suas dívidas em dia, sem causar sérios danos aos credores. Henrique II, rei da França, quando quis reconstruir seu exército após sua derrota pelos imperiais em São Quintino, convocou os três estados de seu reino e, por meio do cardeal de Lorena, pediu-lhes para encontrar mil pessoas em todo o estado que cada uma lhe emprestasse mil escudos sem juros. Isso ele obteve facilmente, e com os três milhões de ouro que acumulou, ele renovou a guerra e fez aquisições importantes. Assim, sem oprimir o povo que já estava exausto por contribuições anteriores, ele encontrou uma maneira de empreender campanhas gloriosas. Ele havia aprendido anteriormente que pedir dinheiro emprestado a juros não resultava em nada além do colapso das receitas e da perda de crédito. Ele deixou, de fato, dívidas tão grandes que a coroa da França ainda sente seu peso.”

(The reason of state; edited by Robert Bireley, Cambridge University Press, Livro 7, 5. Tradução própria)

Pe. Taparelli D’Azeglio sobre a moralidade por detrás do uso da dívida pública e a prudência nos gastos públicos

“1185. E certamente entre essas artes de prover as despesas do Estado, poucas foram tão abusadas quanto a Dívida Pública. Explicar a multidão de suas engenhosas e incontáveis combinações, assim como expor seus acertos e desacertos, suas vantagens e prejuízos, é incumbência da economia política: iremos nos limitar a expor sobre este assunto as leis morais, derivando-as do que já foi exposto acerca dos tributos em geral.

Primeiramente, a Dívida Pública, assim como todos os demais impostos, deve ser justificada por sua necessidade, que pode ser pecuniária ou moral. O sustento de uma guerra justa e a realização de um empreendimento útil que necessite de capitais extraordinários podem constituir a necessidade pecuniária de contrair Dívida Pública. Sua necessidade moral é constituída pelo próprio interesse que os credores do Estado têm em que seja firme e próspera a existência política deste; por isso, alguns generais em tempos de guerra civil abriram empréstimos entre suas próprias tropas; no entanto, esse tipo de laço moral tem hoje pouca força, pois geralmente os fundos públicos estão sob a tutela da sociedade europeia como um todo, interessada em mantê-los apesar de todas as convulsões políticas.

II. A segunda lei da Dívida Pública é sua moralidade. Entre as inúmeras maneiras de fazer empréstimos públicos, todas estão sujeitas a mais ou menos inconvenientes: diferida ou consolidada, vitalícia ou perpétua, alienável ou inalienável, aparente ou real, a Dívida Pública pode se apresentar de várias formas em que a moralidade saia melhor ou pior. As vendas de títulos públicos podem dar aos agiotas oportunidades frequentes de conduta reprovável e aos incautos, de ruína; é uma graça que o público não seja cúmplice de tal comércio.

III. Isso seria contrário à terceira lei moral da Dívida Pública, ou seja, a fidelidade. Contra esta, pode-se pecar de duas maneiras, abertamente ou encobertamente: primeiro, negando ou reduzindo a devida satisfação aos credores e, em segundo lugar, entregando a eles um valor nominal e não real, como por exemplo, fornecendo moeda falsa ou multiplicando excessivamente os títulos, etc. A lealdade é uma obrigação de todo contratante e da sociedade mais do que de qualquer outro, não apenas por ser mais poderosa e rica, mas por ser a protetora necessária da justiça.

IV. Para assegurar esta fidelidade da Dívida Pública, é conveniente não apenas garantir antecipadamente que há recursos para satisfazê-la, mas também estabelecer as chamadas Caixas de Amortização. Mas o melhor de tudo e o verdadeiro remédio é a prudente economia nos gastos públicos; somente assim pode haver a segurança de que nem o governo se arruíne a si mesmo com o déficit em constante crescimento, nem arruíne os súditos com impostos e os credores com a falência.”

(Ensayo teórico del derecho natural (Tomo II), ARTÍCULO III, § III, 1866. Tradução própria)

Pe. Matteo Liberatore, S.J. (1888)

Quando a prática de detenção do título público como um guarda-chuva financeiro não tinha adquirido cidadania nas ideias econômicas, a visão da dívida pública seguia mais ou menos a justificativa de senso comum do jesuíta Matteo Liberatore:

“56. Há casos extraordinários (por exemplo, uma guerra, uma fome, a execução de trabalhos urgentes) nos quais o Estado tem necessidades urgentes de dinheiro, e não pode recorrer aos impostos, porque eles não fornecerão uma quantia suficiente, serão muito longos a levar a cabo ou não poderão remontar a um aumento considerável. Tal embaraço instalado, não resta partido a tomar senão o empréstimo.” (Principes d’économie Politique. Traduit de l’italien par le Baron Silvestre de Sacy, 2° édition. H. Oudin, Paris, 10, rue de Mézières et a Poitiers, primeira edição de 1888. Edição consultada: 1899, P. 513, C. IV )

Venerável Pe. León Dehon, fundador dos dehonianos (1895)

Respondia em seu tempo à questão “os empréstimos de anuidades perpétuas são justificados?” em seu tempo:

“- Não. É com razão que economistas sérios veem isso como um ato imoral. Pedir emprestado assim equivale a consumir os recursos do futuro com a fartura do presente. Qualquer dívida pública precisa ter sua amortização ordenada a um prazo que não seja excessivo” (Catéchisme Social. PARIS, Librairie Bloud et Barral 4, Rue Madame et Rue De Rennes, 59, 1895., P. 42)

“É necessário tolerar os interesses moderados do dinheiro e combater os excessos de uma sociedade capitalista.

“128 (…) quais são as principais causas dessa situação desastrosa? Eis algumas:

a) Em primeiro lugar, há os grandes empréstimos estatais [N.E.: títulos públicos], que favorecem a vida sem trabalho e fornecem enorme alimento para o comércio de dinheiro. Isso é algo novo, e os séculos passados não viram empréstimos tão exagerados e injustificáveis, que impõem encargos esmagadores aos contribuintes, ao mesmo tempo em que abrem caminho para a falência dos Estados e dos rentistas” (Tradução própria de “L’usure au temps présent – étude sur l’usure au double point de vue de la morale et de l’économie sociale”, Ven. Leon Dehon, Supérieur des Prêtres du Sacré Coeur de Jésus, de Saint-Quentin, No. 33, 1895, p. 82)

Claudio Jannet, professor de economia no Instituto Católico de Paris (1892)

“A ciência econômica demonstrou, sem dúvida, teoricamente, a superioridade do procedimento de ajudas extraordinárias da Idade Média em relação à contração perpétua de empréstimos para fazer face a despesas excepcionais. Um imposto extraordinário incide temporária e exclusivamente sobre os capitalistas e não sobre as massas populares, ao passo que os impostos permanentes, necessários para assegurar o serviço dos empréstimos a longo prazo, recaem inevitavelmente sobre estas últimas; os auxílios extraordinários incitam os capitalistas a poupar energicamente para reconstituir o domínio que têm sobre a sua riqueza, em vez de levar ao aumento, sem trabalho, de fortunas constituídas por rendas perpétuas (§3): finalmente, evita-se assim o grande inconveniente dos empréstimos, que consiste em travar durante muito tempo a descida da taxa de juro, em aumentar a taxa de lucro das empresas e, consequentemente, em agravar indiretamente a condição dos trabalhadores” (Le capital la spéculation et la finance au xix’ siecle, Librairie Plon, 1892. Claudio Jannet, CHAPITRE X Les Emprunts Publics et la Finance Internationale P. 404).

– Economistas laicos sobre o mesmo problema

Álvaro Florez-Estrada (1765-1853), economista espanhol

“Deve-se inferir, do que acabamos de dizer, que só o hábito da profusão e a carência de conhecimentos econômicos têm podido impedir que o sistema de empréstimos públicos [N.T: o autor os chama de empréstitos] inspire toda a aversão que merece. Uma dívida nacional, se não é amortizada em poucos anos, não apresenta outra alternativa, como afirma Hume, senão a decadência da nação ou a bancarrota do governo. Ainda que deixássemos de lado os demais corolários, bastaria o terceiro para que todas as almas generosas mirassem os empréstitos com suma indignação”. (Curso de Economía Política, Tomo II, Cuarta edición corregida. Madrid, imprenta de Dom Miguel de Burgos, Febrero de 1835, P. 504).

Tais “corolários” são os males que o sistema citado ocasiona, dos quais se destacam alguns pela atualidade (Florez-Estrada fornece dezoito): “1º – arrastra os governos à prodigalidade, 2º – produz guerras injustas, 3º contribui para consolidar o despotismo, 4º fomenta a imoralidade, 5º – impede que as contribuições sejam repartidas com igualdade, 6º – exime de todo imposto a renda das classes mais ricas (…) 8° Aumenta o número de capitalistas ociosos e diminui o número de capitalistas activos. (…) 12º Faz com que os governos actuais devorem os recursos das gerações futuras. (…) 15º Priva a indústria de um grande número de armas. 16º Torna embaraçosa a administração do Tesouro.” (Idem, P. 502).

– Resumo da concepção católica sobre o Título Público

É fácil identificar, principalmente no contexto mundial, a presença dos males da dívida pública excessiva e com pagamentos eternos (ainda que todos os títulos tenham prazo). Afinal, um país que aufere muita renda de títulos públicos tende a ver como desnecessários os impostos maiores nas rendas daqueles com maior capacidade contributiva (considerando, é claro, adequado e razoável teto para o fim da alíquota progressiva, ou como os teólogos dizem, um imposto digressivo).

Um sistema bem elaborado e justo tentaria impedir toda forma de eternizar a quantidade de dívida pública que o país pode fazer e, consequentemente, pagar juros sobre.

E sobre emprestar dinheiro ao governo, deve-se dizer: quem não confiaria seu dinheiro a uma pessoa que a cada quatro ou cinco anos pode mudar completamente, é a maior devedora do país e muito do que ela decide investir não traz retorno algum, nem social, nem financeiro? Se essa pessoa é o governo, quase por magia o senso comum passa a achar ótimo.

Como dizia Claude Jannet, “sempre que um governo se desvia das regras da sabedoria financeira, coloca-se na dependência da Alta Banca (Idem, p. 417)

Escravidão e a Igreja Católica, segundo Leão XIII citando diversos Papas e santos antigos

Em encíclica escrita aos Bispos do Brasil por ocasião da libertação dos escravos:

“Veneráveis Irmãos, Saúde e benção apostólica

Dentre os muitos e grandes testemunhos de piedade, que quase todos os povos Nos manifestaram e continuam a manifestar, felicitando-Nos por motivo de Nosso qüinquagésimo aniversário de sacerdócio, há um que particularmente Nos comove, e é o que Nos veio do Brasil, que por ocasião daquele feliz acontecimento, legalmente concedeu a liberdade a um grande número dos que ainda gemiam sob o jugo da escravidão nos dilatados domínios daquele Império.

(…)

Isto foi-Nos sobremodo agradável e consolador, e mais que tudo porque logramos ver a confirmação duma tão feliz notícia, a de que os brasileiros queriam abolir desde já e extirpar completamente a barbárie da escravidão. A vontade do povo foi secundada pelo zelo desvelado do Imperador e de sua augusta filha, bem como pelos que dirigem a pública administração, havendo para isso promulgado e sancionado leis adequadas. Manifestamos a alegria que sentimos, especialmente quando, em Janeiro passado, declaramos ao enviado do augusto Imperador, que Nós mesmo escreveríamos aos Bispos do Brasil recomendando-lhes a causa dos míseros escravos (por ocasião de Nosso jubileu… Nós desejamos dar “ao Brasil um testemunho particular do Nosso paternal afeto com referência à emancipação dos escravos”. Resposta à mensagem do ministro do Brasil, Souza Correia).

 Somos em verdade o Vigário de Cristo, Filho de Deus, que a tal extremo amou o gênero humano, que não só não se dignou fazendo-se Homem, habitar entre nós, senão que também, comprazendo-se em chamar-se Filho do homem, claramente protestou que se abatera à nossa condição a fim de anunciar aos cativos a sua libertação (Is. LVI, I, Luc. IV 19.) a fim de que, quebrando as algemas da escravidão que oprimiam o gênero humano, isto é, as algemas do pecado, restaurasse todas as coisas nos céus e na terra (Ef. 1, 10) deste modo restabelecesse na prístina dignidade toda a descendência de Adão contaminada pelo pecado original.

(…)

A escravidão no mundo antigo

“Deste lutuoso espetáculo é testemunha a história antiga até ao advento do Redentor; a escravatura propagou-se em todos os povos, e tão reduzido era o número dos homens livres que um poeta chegou a pôr nos lábios de César esta atrocidade: O gênero humano vive para poucos (Lucan. Phars. V, 343).

A escravatura estava em vigor nas nações mais civilizadas, entre os gregos e romanos, onde a dominação dum pequeno número se impunha à multidão, e esta dominação era exercida com tanta perversidade e orgulho, que as turbas de escravos eram considerados como bens, não como pessoas, como coisas desprovidas de todo o direito e até da faculdade de conservar a vida.

Os escravos vivem sob o poder dos senhores, este poder emana do direito das gentes; em quase todas as nações vemos, com efeito, que os senhores tem direito de vida e de morte sobre os escravos, e tudo o que estes adquirem, adquirem-no para os seus senhores (Justinian, Inst. I. I, tit. 8, n. 1).

Deste transtorno moral seguiu-se que era lícito aos senhores permutar, pública e impunemente, legá-los como herança, matá-los, abusar deles para satisfação das suas paixões e da sua cruel superstição.

Ainda mais, os que entre os gentios tinham a reputação de sábios, filósofos insígnes, jurisconsultos doutíssimos trataram de se persuadir a si mesmo e de persuadirem a outros, por um supremo ultraje ao senso comum, que a escravatura nada mais é do que a condição necessária da natureza; e não se envergonharam de ensinar que a raça dos escravos era muito inferior em aptidões intelectuais e em beleza física à raça dos homens livres; que era necessário, por isso, que os escravos, instrumentos desprovidos de razão e de sabedoria, estivessem em tudo sujeitos à vontade de seus senhores.

Esta doutrina desumana e iníqua é altamente detestável, e tal que uma vez admitida não há opressão, por infame e bárbara que seja, que não possa imprudentemente sustentar-se com uma certa aparência de legalidade e de direito.

A história abunda em exemplos de grande número de crimes e de perniciosos flagelos que a escravatura trouxe às nações; excitou-se o ódio no coração dos escravos, e os senhores viram-se reduzidos a viverem em apreensões e receios contínuos; aqueles preparavam os fachos incendiários do seu furor, estes exacerbavam as suas crueldades; os Estados viam-se abalados e expostos a todos os momentos à ruína pelo número de uns e pela força dos outros; numa palavra, da escravatura provieram os tumultos, as sedições, a pilhagem, as guerras e as carnificinas (…).

Grandes coisas foram feitas em favor dos escravos pelos Pontífices Romanos, os quais foram verdadeiramente os defensores dos fracos e os vingadores dos oprimidos. S. Gregório o Grande, deu a liberdade ao maior número de escravos que lhe foi possível, e no Concílio romano de 597 quis que fosse dada a liberdade aos que quisessem seguir a vida monástica.

Adriano I ensinou que os escravos podiam livremente contrair matrimônio, ainda mesmo contra a vontade dos seus senhores. Em 1167, foi abertamente intimado por Alexandre III ao rei mouro de Valença que não tornasse escravo nenhum cristão, porque ninguém é escravo por natureza e Deus a todos criou livres. Em 1198, Inocêncio III aprovou e confirmou a pedido dos fundadores João da Matha e Félix de Valois, a Ordem da Santíssima Trindade para redenção dos cristãos, que haviam caído em poder dos turcos.

Uma Ordem semelhante, a de Nossa Senhora das Mercês, foi aprovada por Honório III e depois por Gregório IX, Ordem que São Pedro Nolasco havia fundado com esta lei severa que os seus religiosos se entregassem à escravidão em lugar dos cristãos cativos, se tanto fosse necessário para os libertar. Gregório IX assegurou à liberdade um mais vasto asilo, decretando que era proibido vender escravos à Igreja, e exortou aos fiéis a que, em expiação das suas culpas, oferecessem os seus escravos a Deus e aos Santos (…).

No último quartel do século XV, quando o funesto flagelo da escravatura havia desaparecido das nações cristãs, os Estados se forçaram por se consolidarem sobre a base da liberdade evangélica e dilatar os limites de seu Império, a Sé Apostólica velava com o maior cuidado a fim de impedir que novamente surgisse a escravatura. Para isto olhou com especial cuidado para as regiões novamente descobertas da África, da Ásia e da América; espalhara-se, com efeito, a notícia de que os chefes das expedições ainda que cristãos, injustamente empregavam as suas armas e os seus talentos para estabelecer e impor a escravidão entre aquelas populações inofensivas. A áspera natureza do solo que tentavam subjugar, as riquezas metalíferas que tentavam explorar e que exigiam enormes trabalhos, levaram aquelas expedições a adotar planos absolutamente injustos e desumanos. Para isso começou-se a exercer o tráfico de escravos trazidos da Etiópia, tráfico a que se chamou escravatura dos negros e que largamente se propagou naquelas colônias.

Por um tal excesso praticou-se com os indígenas, geralmente designados sob o nome de Indianos, uma opressão semelhante à escravatura. Desde que foi conhecido com certeza este estado de coisas, Pio II dirigiu-se imediatamente à autoridade episcopal do lugar onde se exercia a escravatura, por uma carta na qual repreende e condena tão grave iniquidade. Pouco depois Leão X exerce, quanto possível, os seus bons ofícios e a sua autoridade junto aos reis de Portugal e Espanha a fim de que tomem a peito extirpar completamente um tal excesso, tão contrário à religião como à humanidade e à justiça. Todavia a calamidade da escravatura lançou profundas raízes, por causa da persistência de sua causa ignóbil, que era a inextinguível sede do lucro. Então Paulo III, preocupado em sua caridade paternal com a condição dos escravos indianos, chegou ao extremo de se pronunciar publicamente sobre esta questão e por assim dizer em face de todas as nações, por decreto solene, estabelecendo que se devia reconhecer uma tríplice faculdade justa e própria a todos aqueles indígenas, a saber que cada um deles pudesse ser senhor de sua pessoa, que pudesse viver em sociedade segundo as suas leis e que pudessem adquirir e possuir bens. Confirmou isto mais amplamente por cartas ao Cardeal Arcebispo de Toledo, estabelecendo nelas que os que transgredissem aquele decreto seriam punidos com interdito e que era absolutamente reservado ao Pontífice Romano a faculdade de os absolver (Veritas ipsa, 2 Inn, 1859).

Com igual solicitude e constância, outros Pontífices como Urbano VIII e Bento XIV se mostraram valentes defensores da liberdade em favor dos indianos e dos negros e daqueles que ainda não tinham recebido a fé cristã. Foi ainda Pio VII que por ocasião do congresso realizado em Viena pelos príncipes confederados da Europa, chamou a sua atenção comum, entre outras coisas, para o tráfico dos negros, a fim de que fosse prontamente abolido, já em desuso em muitas localidades. Gregório XVI também admoestou gravemente aqueles que, sobre aquele ponto, violaram as leis e os deveres da humanidade; renovou os decretos e as penas impostas pela Sé Apostólica, e nada omitiu que pudesse levar as nações longínquas a imitar a mansidão da nações europeias, a aborrecer e evitar a ignomínia e a crueldade da escravatura (In supremo Apostolus fastigio, 3 dec. 1857)”.

5-5-1888, In Plurimis. Link: http://w2.vatican.va/content/leo-xiii/en/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_05051888_in-plurimis.html

Retirado de: https://www.pliniocorreadeoliveira.info/Leao13_18880505_libertacao_escravos.htm

Bíblia e teólogos contra a reserva fracionária ou o depósito irregular e, portanto, contra seus fiadores modernos (banco central e instituições análogas)

Para entender melhor este artigo, recomendo ler também: Bíblia, prelados e teólogos contra a mutação monetária legal não-emergencial

A reserva fracionária ou, como se conhecia na antiguidade, o “depósito irregular”, trata-se de um contrato, verbal ou escrito, onde o custodiante do dinheiro depositado passa a emprestar uma parte desse mesmo depósito sem prévio consentimento de quem deixou depositado.

O depósito irregular se dá hoje predominantemente via constrangimento popular assentido por medo de desbancarização, o que aliena o cidadão das transações financeiras com a sociedade majoritariamente bancarizada, além de deixa-lo à mercê da inflação.

A reserva fracionária é o contrato de depósito irregular como se conhecia no direito romano em nova roupagem, isto é, legalizado, em uso mediante regras específicas da autoridade monetária nacional, etc. É comprovado matematicamente, até mesmo pelos defensores de sua existência, que a reserva fracionária causa inflação, logo, saber a doutrina católica contra a mutação monetária artificial não-emergencial é pré-requisito para entender os argumentos aqui.

Este artigo pretende unicamente criticar uma determinada função adquirida pelo Banco Central, ou autoridade monetária análoga, no século XX, e principalmente no ocidente: fiadora da reserva fracionária. Ou seja, põe-se de lado toda outra incumbência que a autoridade monetária nacional possa possuir.

– Sumário

Sagrada Escritura

Teólogos

Conclusão
Objeções à conclusão

– Sagrada Escritura

Episódio evangélico da expulsão dos banqueiros do templo

Na concordância dos Santos Evangelhos do então Cônego Leopoldo e Silva (1903), lemos como Nosso Senhor Jesus Cristo duas vezes expulsou os “banqueiros”: uma ao início de sua vida pública com um chicote que fez (S. João II, 13-25), e outra na semana santa virando a mesa dos banqueiros e acusando estes e outros de fazerem a “casa de oração” um “covil de ladrões” (S. Mateus XXI, 12-17, S. Marcos XI, 15-19, S. Lucas XIX, 47-48).

Diz o professor Huerta de Soto que tais textos confirmam que o templo de Jerusalém (por mimetismo o maligno também sugestionava as mesmas práticas nos templos pagãos da antiguidade), “funcionava como um verdadeiro banco público, que recebia depósitos de hebreus ricos e pobres. A admoestação de Jesus Cristo poderia ser entendida como um protesto contra os abusos advindos de uma prática ilegítima (abusos consistentes, como já sabemos, no uso do dinheiro que lhes era depositado para custódia). Além disso, as passagens bíblicas ilustram muito bem a simbiose que já na altura havia entre o sistema bancário e a autoridade pública pois tanto os sumos sacerdotes como os escribas ficaram indignados com o comportamento de Jesus” [1].

“Aquele que oferece um sacrifício arrancado do dinheiro dos pobres é como o que degola o filho aos olhos do pai. O pão dos indigentes é a vida dos pobres; aquele que o tira é um homicida. Quem tira de um homem o pão de seu trabalho é como o assassino do seu próximo. O que derrama o sangue e o que usa de fraude no pagamento de um operário são irmãos.” Eclo XXXIV, 24-27. Trecho sagrado que prova como não pagar o salário a quem trabalha é um dos pecados que clama aos céus e brada a Deus por vingança. Geralmente a inflação faz com que não se possa pagar o valor certo a quem trabalhou.

“A balança fraudulenta é abominada pelo Senhor.” Provérbios XI, 1. A balança é fraudulenta se o valor do dinheiro é constantemente modificado, do qual o poder estatal deve ser guardião, pois “dai a César o que é de César”.

– Teólogos

Aviso: os trabalhos dos escolásticos tardios espanhóis estão disponíveis online para consulta, porém infelizmente se vê uma linguagem muito difícil de compreender, mesmo para um entendido da língua castelhana. Assim, é preferível se referir ao resumo feito por Jesús Huerta de Soto com suas citações [2].

Pe. Saravia de la Calle (século XVI)

Em sua “Instrucción de mercaderes” (Instrução aos comerciantes, 1544) duramente denuncia os banqueiros prestamistas do depósito alheio, por ele rotulados de “glutões vorazes, que comem tudo, destroem tudo, confundem tudo, roubam e mancham tudo, como as harpias de Pineu” [3]. E destes inclusive diz que “vão para a rua e para a praça com mesa e cadeira e caixa e livro, como as rameiras vão para o bordel com a cadeira”. De la Calle inclusive ironiza os crédulos naquela atividade bancária desta forma:

“Acreditas que o banqueiro provavelmente guardará aquele dinheiro do depósito e não lucrará com ele; mas esta probabilidade não se pode ter de nenhum destes aproveitadores. Pelo contrário, o banqueiro há-de investi-lo e tentar lucrar com ele, porque como seria possível pagar 7 e 10 por cento de juros àqueles que lhe fornecem o dinheiro, se não o usasse?” [4].

Pe. Martín de Azpilcueta C.R.S.A. (1493-1586)

Era primo, pela família Azpicuelleta, de S. Francisco Xavier:

Para ele, paga-se “para compensar o trabalho e o cuidado que o cambista tem de receber e guardar o dinheiro” [5], ou seja, são os depositantes que deviam pagar ao banqueiro, e não o inverso. Seguindo o mesmo raciocínio de Saravia de la Calle, condena expressamente aqueles clientes que pretendem não pagar pela custódia do depósito, e ainda auferir juros.

Pe. Tomás de Mercado, O.P. (1523-1575)

Em 1571, além de sustentar similar defesa aos juristas antes citados em relação à necessidade de pagamento do cliente ao depositante, também usa uma “juridiquês ironia” contra os banqueiros, tão “generosos” que não cobram nada pela custódia dos depósitos: “os desta cidade, é certo, são realíssimos e afidalgados, pois não pedem nem recebem nenhum salário”.

Ademais, De Mercado parece ter sido (JHS, P.108), o mais fiel à tradição jurídica romana acerca do depósito irregular: “hão de entender [os banqueiros] que a moeda não é sua, mas alheia, e não é justo que, por se servirem dela, deixem de servir o seu dono” [6]. Adicionalmente às análises jurídicas, agrega Tomás de Mercado recomendações morais: “mas como quando se ganha comodamente é muito difícil refrear a ganância, nenhum deles ouve estes avisos ou age de acordo com estas condições”. Nota Huerta de Soto como isto levou Tomás de Mercado a aplaudir a promulgação do imperador D. Carlos impedindo os banqueiros de fazerem negócios particulares, com o objetivo de eliminar a tentação de financiá-los com o dinheiro obtido dos depositantes [7].

Pe. Bernard W. Dempsey, S.J. (1903-1960) citando Pio XII e Leão XIII no contexto de ataque ao elemento de usura na inflação e, por conseguinte, no que a reserva fracionária causa

“Mesmo quando as pessoas não entendem o processo [finanças públicas], elas têm o sentimento de alguma coisa está errada, e buscam se defender contra ela” [8]:

[Citação de Pio XII para ilustrar a afirmação]: “Tal estado de coisas influi mais infelizmente nas mentalidades dos indivíduos. O indivíduo vem a ter cada vez menos compreensão dos assuntos financeiros do Estado. Mesmo na mais sábia política ele suspeita sempre de alguma força misteriosa, algum motivo escondido e malicioso que ele deve prudentemente desconfiar e se proteger. Eis aí, brevemente, onde se deve definitivamente buscar a causa profunda da decadência da consciência moral de todas as pessoas — de todas as classes — em matéria de finanças públicas e principalmente em matéria fiscal” (Aux participants au congrès de l’Institut international des finances publiques. Acesso em: 3 de dezembro de 2021. Link: https://www.vatican.va/content/pius-xii/fr/speeches/1948/documents/hf_p-xii_spe_19481002_istituto-finanze-pubbliche.html. Dia 2 de outubro de 1948).

“Um esboço essencial da doutrina da Igreja sobre a usura é o seguinte.

A usura é o ganho proveniente de um empréstimo de mutuum. Mutuum é um contrato relativo ao empréstimo de um objeto em condições tais que o título da coisa emprestada passa para o mutuário. Este fato é apontado como a origem histórica do nome do empréstimo – mutuum é uma corrupção de meum e tuum, meu e teu. Assim, mutuum é uma transacção de empréstimo em que o que é meu passa a ser teu, apesar de ser um empréstimo. Os casos óbvios em que o título deve ser transferido para o mutuário são aqueles em que os objetos devem ser consumidos na sua utilização.

Para utilizar os exemplos tradicionais dos moralistas, aquele que pede emprestado um pão ou uma garrafa de vinho não pode obviamente devolver a coisa emprestada, ou a transação de empréstimo seria inútil.

Aqui está a origem da ideia de que a proibição da Igreja relativamente à usura tem algo a ver com os empréstimos de bens de consumo. Os bens de consumo são apenas os exemplos mais simples e óbvios de bens fungíveis. Os bens fungíveis são aqueles que podem fungivice alterius, ou seja, em que uma unidade pode funcionar no lugar de outra. São definidos pelos moralistas como “constantes em número, peso e medida”. (Sb XI, 21)

Os bens fungíveis são o que hoje chamamos de bens padronizados. Com os bens estandardizados, é-me indiferente receber de volta o mesmo artigo que emprestei ou outra unidade padronizada. A propósito, a prevalência da produção em grande escala, de peças intercambiáveis e de bens estandardizados aumentaria consideravelmente o número de bens que poderiam ser objeto de um empréstimo de mutuum. Por outras palavras, nas condições industriais modernas, com muita classificação e padronização, há muito mais casos do que antigamente nos quais ficaríamos satisfeitos por receber um artigo idêntico em vez de um que emprestamos. Os livros, por exemplo, na Idade Média eram raros, caros e quase únicos; hoje, um exemplar do Almanaque Mundial é tão bom para mim como outro.

O dinheiro parece ser o mais padronizado de todos os bens e, por isso, o exemplo perfeito de um bem fungível, logo, o exemplo inevitável e perfeito do objeto de um empréstimo mutuum; pois, para todos os efeitos práticos, o dinheiro só tem valor em termos de ser gasto num futuro mais ou menos imediato. O dinheiro é o único bem cujo título de propriedade é mais seguramente transferido por ocasião de um empréstimo e, por conseguinte, um empréstimo de dinheiro sempre foi um contrato de mutuum.

As modernas moedas inflacionárias, que não têm um custo de produção significativo, levantaram alguns problemas muito desagradáveis sobre o dinheiro enquanto objeto adequado para um empréstimo ao abrigo do contrato de mutuum. O dinheiro pode ser constante em número, peso e medida, no sentido em que, quando compro um bilhete de comboio, não estou minimamente preocupado se recebo esta ou aquela nota de 5 dólares de troco. Se o dinheiro é constante em número, peso e medida ao longo do tempo, é uma questão completamente diferente. O caso do devedor americano da Hamburg-American Line que, no auge da inflação alemã, pagou 26 dólares americanos em ouro para cumprir uma dívida em marcos que originalmente representava alguns milhões de dólares, é amplamente conhecido (…).

“Apesar de um grande número de escritos confusos em várias épocas, os seguintes pontos sobre o ensinamento da Igreja sobre a usura são claros:

(1) Usura é um ganho de um empréstimo de mutuum. 
(2) A usura é intrinsecamente injusta porque é a extorsão de um pagamento sem valor equivalente prestado.
(3) Que a usura é um pecado é formalmente definido. É condenado pela Igreja, mas a posição da Igreja era clara muito antes da condenação formal.
(4) O empréstimo de dinheiro, considerado em si mesmo, é sempre um empréstimo de mutuum e, portanto, o ganho de um empréstimo de dinheiro é usura.

Este ensinamento pareceria simples e conclusivo em si mesmo, no entanto, desde tempos muito remotos a Igreja reconheceu que um empréstimo de dinheiro pode envolver circunstâncias que justifiquem um pagamento além do valor emprestado, mesmo que o empréstimo quando concedido considerado estritamente em si é um empréstimo de mutuum. Desde tempos remotos se reconhece como legítimo o pagamento no caso do foenus nauticum, ou seja, juros sobre projetos marítimos (…)

Este risco óbvio e extremo foi provavelmente o primeiro dos títulos extrínsecos claramente reconhecidos. Colocar seu dinheiro nesse empreendimento obviamente arriscado, dava ao credor o direito manifesto a uma compensação que não era devida a alguém que emprestasse seu dinheiro localmente e por um período de tempo definido. Esse risco obviamente impunha um custo ao credor, pelo qual ele merecia uma compensação se o empréstimo fosse feito.

Não cabe aqui detalhar a longa história do reconhecimento de outras circunstâncias extrínsecas ao empréstimo de mutuum. Sua aprovação final na prática e na teoria pela Igreja foi definida provavelmente por volta do ano 1.000 d.C., e cento e cinquenta anos depois eles foram classificados em seus aspectos positivos e negativos como “lucrum cessans” e “damnum emergens”, ganho cessante e perda emergente. Esses dois têm isso em comum, eles simplesmente representam diferentes formas de um custo imposto a um credor (…).

Sempre que se verifiquem as condições exigidas, o dinheiro tem sim um valor extrínseco e, sem prejuízo do princípio de que a usura é ganho por empréstimo de mutuum, existe um título extrínseco à indenização, isto é, um título extrínseco à transação de empréstimo considerada em si. Em outras palavras, o título do ganho não é o empréstimo, mas um fato diferente também verdadeiro no momento e na ocasião do empréstimo. Coextensivo com este fato da existência das circunstâncias que criam títulos extrínsecos, a cessão de dinheiro em um empréstimo impõe um custo ao credor porque este cede esses outros valores juntamente com o valor do dinheiro considerado estritamente em si mesmo. Ele cede os valores que o dinheiro lhe teria fornecido se não tivesse sido emprestado, ou seja, (1) algum custo direto para seu próprio negócio ou pessoa, e (2) alguma oportunidade prática de ganho renunciada por falta de fundos. Qualquer um destes é um custo (…).

Chegamos, então, diretamente ao problema central: qual é o elemento usurário na inflação? O elemento de usura na inflação reside no único fato de que a inflação cria ganhos de empréstimos de dinheiro de mutuum por parte de pessoas e instituições que não pouparam e, portanto, não têm os direitos morais extrínsecos à compensação. Sempre que se empresta dinheiro que não foi previamente poupado, há um ganho de um empréstimo de mutuum para o qual não existe título moral. Sob condições inflacionárias, particularmente quando os preços estão claramente subindo – como no final das contas sempre acontece – as pessoas que recebem pagamentos de juros sobre fundos que nunca foram salvos estão recebendo algo ao qual não têm direito moral.

Embora seja obviamente verdade que as principais discussões sobre a usura dizem respeito a pagamentos na forma de juros, não há nada na definição de usura e nada na doutrina comum dos moralistas ao longo dos séculos que a limite a isso; ganho de qualquer empréstimo de mutuum é usura, independentemente da forma em que o pagamento é feito. Os moralistas clássicos dão muitos exemplos de transações usurárias que não envolvem pagamento de juros. Um exemplo seria o caso de um empréstimo pelo qual, suponhamos, excluímos qualquer título extrínseco, mas ao qual se acrescenta a condição de que o devedor encontre um emprego para o filho do credor. Esta seria, sem dúvida, uma transação usurária (…).

Contudo, a grande peculiaridade do dinheiro e do banco modernos é que novos fundos geralmente surgem por meio do processo de empréstimo. Se um governo simplesmente imprimisse papel-moeda e o distribuísse, ficaria claro que qualquer valor que o governo recebesse como resultado da primeira transação seria algo a que não tem direito, a menos que, em uma emergência violenta, isso fosse visto como exigido em uma forma muito desigual de tributação. Quando o dinheiro criado não adquire existência física de imediato, mas se torna simplesmente um saldo bancário do qual o tomador de empréstimo pode sacar, o processo é obscurecido, mas não alterado. Todos os depositantes anteriores perderam um direito contra o produto social atual que foi absorvido pelo usuário de fundos que não foram economizados nem ganhos. Quando o devedor paga o empréstimo com os fundos ganhos e economizados, alguém ganha. Quem quer que seja essa pessoa, ela tem um ganho de um empréstimo de mutuum. Ele recebeu usura.


Quando, sob condições de tempos de guerra, um governo faz uso fácil de métodos inflacionários, a escala das operações torna o elemento de usura na inflação muito grande e muito obscuro. No entanto, sua presença é claramente percebida pelas mudanças na distribuição de renda sempre associadas ao processo inflacionário mesmo quando mudanças de preços são atrasadas (B. W. Dempsey, S.J., “Cyclical Variations in Income Distribution”, Econometrica, vol. XI, no. 2, April, 1943, pp. 168-169).

Do ponto de vista moral, a peculiaridade no elemento de usura na inflação é o fato de que o mutuum é um contrato vinculante na justiça comutativa e exige restituição. A difusão da injustiça sob a inflação do tempo de guerra torna muito difícil saber quem deve restituir a quem. Essa situação eu descrevi detalhadamente em outro lugar como usura institucional, um processo pelo qual os governos e o sistema bancário introduzem um elemento usurário em um contrato de empréstimo pagável nos fundos em expansão. Os poupadores que sofrem com este procedimento sofreram uma perda proveniente de um processo de empréstimo de mutuum, cuja perda eles têm o direito de ser compensados.

A usura institucional parece ser o que estava na mente de Leão XIII quando escreveu [9]: “A usura voraz veio agravar ainda mais o mal. Condenada muitas vezes pelo julgamento da Igreja, não tem deixado de ser praticada sob outra forma por homens ávidos de ganância, e de insaciável ambição.” [10]

Conclusão

1. Considerando que a mutação monetária artificial não-emergencial pode e é costumeiramente feita pela reserva fracionária legal, 2. Considerando que a mesma mutação monetária perverte o valor real da moeda e, por conseguinte, abala o salário de algum dos serviços prestados à sociedade, e 3. Considerando que não pagar salário a quem trabalha é pecado que clama aos céus e brada a Deus por vingança, ousamos afirmar: a reserva fracionária legal, enquanto instrumento de mutação monetária artificial legal não-emergencial, é um pecado que brada aos céus e clama a Deus por vingança, e precisa ser abolida da face da terra.

Além disso, se alguém cobra juros em cima de dinheiro que não poupou, mas foi criado, essa pessoa comete o pecado da usura, pois “não têm os direitos morais extrínsecos à compensação”, como diz o citado Pe. Dembsey.

Muito mais se poderia prolongar, especialmente sobre a possível opressão daqueles que viviam de assistencialismo estatal, mais especificamente, os “órfãos e viúvas” (bem entendido o conceito) ocasionado um outro pecado que brada aos céus e clama a Deus por vingança: oprimir órfãos e viúvas. Porém, como isso depende de circunstâncias nacionais e específicas, para efeitos de um apanhado econômico visto pela ótica da moral católica, o presente artigo basta.

– Objeções à conclusão de que a reserva fracionária serve a um pecado de usura e, portanto, à pelo menos um dos pecados que clama aos céus e brada a Deus por vingança

Objeção 1: O Escolástico Domingo de Soto diz: “[os banqueiros têm o] costume, segundo se diz, de responder por uma quantidade maior do que a depositada caso um mercador faça o depósito em dinheiro. Entregue dez mil ao cambista; pois ele responderá por doze, talvez quinze; porque ter dinheiro vivo é muito lucrativo para o cambista. E não há nenhum mal nisso” [11]. Já o jesuíta Luis de Molina defende claramente, afinado com o Cardeal Juan de Lugo, a doutrina nova sobre o contrato de depósito monetário irregular bancário: “porque estes banqueiros, como todos os outros, são os verdadeiros donos do dinheiro que está depositado nos bancos, no que se diferenciam muito dos outros depositários […] de modo que o recebem como empréstimo a título precário e, por conseguinte, por sua conta e risco” [12].

Resp. 1: Repara Huerta de Soto [13] como De Molina se choca com sua própria defesa, já em outro lugar (Tratado sobre los préstamos y la usura), sobre a necessidade de um juiz para declarar a duração e data da devolução do empréstimo, quando ele não tiver sido expressamente determinado: “haverá que aceitar a decisão do juiz sobre quanto tempo se poderá retê-lo.” [14] Ora, nada mais indeterminável que um depósito bancário que visava a mera custódia do dinheiro.

Objeção 2: Foram os escolásticos Domingo de Soto e, sobretudo, Luis de Molina que defenderam a nova prática. Também o Cardeal Juan de Lugo afinou com os mesmos. Embora haja oposição entre os teólogos, a maioria dos escolásticos, e inclusive os de autoridade na hierarquia católica, estavam ao lado da prática nova.

Resp. 2: o padre Dembsey, que analisou em 1943 o pensamento dos escolásticos favoráveis àquela prática nova, diz: “Podemos concluir que um escolástico do século dezessete que visse os problemas monetários modernos apoiaria prontamente o plano de reservas de 100% ou a fixação de um limite temporal para o período de validade da moeda. Na verdade, uma oferta monetária fixa ou que só se altere de acordo com critérios objetivos e calculáveis é uma condição necessária para todo o preço justo da moeda que faça sentido.” [15]. Mesmo assim, um tema não é pacífico dentre os teólogos só porque foi majoritariamente sustentado de uma mesma forma numa época pontual (o que não é o caso). Ademais, uma posição teológica, mesmo gozando de defesas de inúmeros teólogos antigos, pode ser criticada por outros teólogos enquanto não é resolvido pelo Patriarca do Ocidente e sucessor de S. Pedro, o Bispo de Roma, seja definitivamente, seja ao longo de um tempo considerável para se tornar magistério ordinário.

Objeção 3: Saravia de la Calle, bem como outros de seu tempo, criticavam o empréstimo a juros. Logo, o argumento da tradição é anacrônico, pois aqueles teólogos raciocinavam com um mundo que hoje não existe mais.

Resp. 3: Empréstimo à juros era condenável à época por estar na maior parte dos casos desprovido de títulos extrínsecos, algo generalizado mais tarde, e com o reconhecimento da Santa Sé. Além disso, na crítica à usura a maioria dos juristas afinava.

Objeção 4: Nosso Senhor Jesus Cristo, na parábola dos talentos, deixa claro que se deve pôr o dinheiro no banco para que renda juros, e não o enterrar, como fez o servo mau (S. Mateus XV, 14-30, S. Lucas XIX, 11-27).

Resp. 4: Segundo recolhido por S. Tomás de Aquino no Catena Aurea, S. João Crisóstomo responde comentando o versículo como aparece em S. Lucas XIX, 11-27: “Nas riquezas materiais, os que devem não estão obrigados mais que a conservá-las, porque tem que entregar tanto quanto recebem, e nada mais se exige deles. Mas nas coisas divinas, não apenas temos a obrigação de preservá-las, mas somos admoestados a aumentá-las. É por isso que segue: “Para que, quando ele voltasse, o levasse com juros”. No mesmo compilado, Santo Ambrósio ainda diz também: “apenas dois devolveram o dinheiro multiplicado, não certamente por causa do dinheiro, mas por causa de sua boa administração. porque uma coisa é a usura do dinheiro, e outra é a da doutrina celestial” (Catena Aurea em español, p. 973).

Fontes

[1] Moeda, Crédito Bancário e Ciclos Econômicos. Tradução de Márcia Xavier de Brito. Instituto Ludwig von Mises. São Paulo, Brasil, 2012, p. 80, nota 35
[2] Mesma obra.
[3] Saravia De La Calle, Instrucción de mercaderes, Pedro de Castro, Medina del Campo 1544, reeditado na Colección de Joyas Bibliográficas, Madri 1949. 1544, p. 180
[4] Idem, 1544, P. 197
[5] pp. 60-61, Comentario resolutorio de cambios, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Madri, 1965. Edição príncipe espanhola publicada por Andrés de Portonarijs, Salamanca 1556. Edição portuguesa publicada com o título de Comentario resolutorio de onzenas, Ioam de Barreyra, Coimbra 1560. Há uma edição em espanhol do livro de 2009 da New Direction | Fundación Civismo.
[6] Suma de tratos y contratos, Sevilha, 1571. Editado e introduzido por Nicolás Sánchez Albornoz, Instituto de Estudios Fiscales, Madri, 1977, vol. II, p. 480
[7] Idem, P. 109
[8] DEMPSEY, The Functional Economy: the bases of Economic Organization. Englewood Cliffs, N. J. Prentince Hall, Inc. 1958, P. 435
[9] Sobre a condição dos operários, 2. Site do Vaticano. <https://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html&gt; Acesso em 3 de dezembro de 2021, apud Dempsey, ibid, P. 437-441
[10] The Functional Economy, The Usury element in inflation, p.435-436 e 437-441.
[11] De iustitia et iure. Andreas Portonarijs, Salamanca, Livro VI, questão XI, artigo único, 1556, p. 591
[12] Tratado sobre los cambios. Instituto de Estudios Fiscales, Madrid 1991. Primeira edição: Cuenca, 1597, pp. 137-140
[13] Moeda, Crédito Bancário e Ciclos Econômicos. Tradução de Márcia Xavier de Brito. São Paulo, Instituto Ludwig von Mises. Brasil, 2012, P.101
[14] Tratado sobre los préstamos y la usura. Instituto de Estudios Fiscales, Madri 1989. Primeira edição: Cuenca, 1597, p. 13. [15] Interest and usury, 1943, p. 210

Teólogos sobre a atual inutilidade do padrão-ouro e o mesmo aplicado a toda moeda-commodity. Apreciação de novas formas de moeda: cripto, digital, universal, CBDC, etc

Para entender melhor este artigo, sugiro ler seu anterior: Bíblia, Santos e teólogos sobre as características formais e materiais da moeda. Papel da soberania monetária, teses resumidas, respostas a objeções

Outro artigo que cito ao final aqui é: Bíblia, prelados e teólogos contra a mutação monetária legal não-emergencial

Esta publicação é quase uma retificação do que escrevi no passado sobre moeda sem lastro (como a que não é lastreada em ouro), movido por falta de estudo. Além disso, antes eu aparentava ser contra a moeda universal em si mesma, o que também não era correto. Neste artigo distingo entre diversos tipos de moeda universal.

Sumário sintético

1. Crítica do padrão-ouro
2. Crítica da moeda-commodity em geral, não só ouro
3. Crítica das criptomoedas
3.1. Características formais das criptomoedas
3.2. Características físicas ou materiais da criptomoeda
4. Crítica da moeda digital
4.1. Características formais da moeda digital
4.2. Características físicas ou materiais da moeda digital
5. Crítica à moeda CBDC (moeda digital do Banco Central)
6. Crítica à moeda universal

1. Crítica do padrão-ouro

Pe. Lamarche, O.P (1938)

“O ouro é manipulado. É um fato inegável. A Liga das Nações pode bem protestar, como já o fez em muitas ocasiões, contra o açambarcamento do ouro pelas “altas finanças” [N.E.: Haute Finance], mas enquanto o metal amarelo continuar a ser a medida da prosperidade das nações, o ouro só será distribuído de acordo segundo o bel-prazer e interesse dos indivíduos que o controlam. A Câmara de Comércio de Londres fez recentemente a declaração, com conhecimento de causa, que o ouro está a tornar-se escasso porque “aqueles que o controlam estão deliberadamente a bloqueá-lo”” [1].

Pe. Denis Fahey (1944)

Crítica ao padrão-ouro (ao longo de todo o seu livro, mas condensado na frase a seguir): “O objetivo das finanças é ser o servo da política e da economia. Em vez disso, tornou-se o mestre de ambos, de modo que os seres humanos são sacrificados à produção de bens materiais e a produção e a distribuição de bens materiais são sacrificadas às finanças” [2]

Plinio Corrêa de Oliveira

“Mesmo um país cuja moeda é baseada no ouro e que se considera estável e seguro por esse motivo, deve ter em mente que o ouro está sendo artificialmente controlado atualmente.

Objetivamente falando, não é sua raridade que sustenta o valor do ouro. Sabemos que há enormes reservas de ouro que já foram exploradas e são mantidas fora de circulação para manter seu preço, assim como há muitas minas de ouro propositalmente inexploradas.

Quem estabelece a quantidade de ouro que deve circular e fixa seu preço? Acredito que essas são assuntos estabelecidos por um acordo entre os chefes do setor financeiro internacional.” [3].

2. Crítica da moeda-commodity em geral, não só ouro

O atual poderio mundial e oligopolizado das indústrias, das Big Tech’s, das finanças internacionais, dos poderes públicos, das mídias, e de seus empregados e lobbyistas ao redor do mundo torna quase impossível que alguma commodity não seja entesourada em algum lugar e manipulada no mercado, seja ela ouro, prata, trigo, arroz, e mesmo commodities como aço.

É muito difícil que algum industrial atualmente não esteja, direta ou indiretamente, favorecendo o grande esquema monopolizador e suas diretrizes no ocidente. Os riscos ao industrial que der azo a um pensamento fora dos padrões “aceitáveis” são imensos: pôr-se-á contra uma máquina de dinheiro internacional que possui eficientes agentes de manipulação psicológica e de lobby nos governos e tomadores de decisão pública. Eis uma das razões para a ruína de muitos industriais no passado ou no passado recente. Geralmente os industriais menos “entrosados com a governança global” já são objetos de um detalhado plano de eliminação, cujo treinamento é feito pelos donos do poder econômico tal como treinamento contra possível invasão estrangeira é feito pelo alto comando do exército. Tais industriais só não são vítimas desde já para evitar a demasiada atenção ou porque não são grandes ameaças na prática.

Em certo sentido, tais razões são extensões das já citadas acerca da moeda-commodity ouro.

3. Crítica das criptomoedas

Para verificar se um candidato para moeda é forte, é preciso analisar se possui as características formais e materiais para servir como uma moeda. Aqui se aborda a criptomoeda em geral, apesar de a primeira ter sido a Bitcoin, criada em 2008.

3.1. Características formais das criptomoedas

Antes de examinar suas características formais (em seu duplo aspecto) e materiais, vale destacar o papel do poder público nas criptomoedas, e seus argumentos.

O poder público garante que o fator de segurança da senha (só você sabe) e do cartão ou cédula ou outro instrumento que serve como moeda (só você tem) esteja aliado ao detentor de direitos (só você é), já a criptomoeda, por não estar sob o poder público, possui unicamente o fator de segurança de senha (só você sabe), o que geralmente se anota em um pedaço de papel para guardar (só você tem), de forma que sua segurança seja menor.

Argumenta-se contra essa desvantagem que o Estado não fornece segurança ao cidadão, seja à medida que não garante a estabilidade da moeda, seja ao perseguir monetariamente cidadãos contrários a um determinado assunto ou política, etc.

Não se exige uma necessária resposta a isso através de uma criptomoeda, porém, analisar-se-á as criptomoedas sob as características formais da moeda já explanadas a fim de verificar se elas procedem.

– Facilitação de trocas das criptomoedas

Só facilita a troca em um dado contexto, ou seja, é contextual. Afinal, seu uso não é generalizado em uma sociedade.

Exemplos: 1. A possessão da criptomoeda não é generalizada como a moeda nacional, portanto, não se pode trocá-la com facilidade em uma sociedade. 2. Uma sociedade autossuficiente de pessoas que aceite generalizadamente alguma criptomoeda como meio de troca estará atada ao preço internacional da “cripto” em questão, o que pode prejudicar na hora de transacionar, mesmo que só se transacione entre a comunidade, porque o preço usado, o internacional, pode oscilar muito. 3. Uma nação heterogênea precisa mudar completamente o modo como se usa e troca moeda, isto é, pelo meio digital, o que mesmo em aplicativos digitais há resistência. Enquanto isso não ocorrer, a criptomoeda não pode ser usada como facilitadora das trocas senão em um dado contexto. 4. O fato de que há glossários e dicionários muito extensos na internet, bem como vídeos e podcasts bem específicos sobre o tema, mostram o quanto o mundo das criptomoedas não só está distante do ser humano comum, como exige muito mais do que o esforço de levar a documentação privada, a todos familiar, ao banco próximo, assinar a papelada e sair com uma senha de poucos números.

– Estabilidade das criptomoedas

Aparentemente estável, pois algo mina a sua estabilidade real.

Exemplos: 1. Possibilidade de servir para capital especulativo: só Deus sabe o número entesourado por especuladores desde o início de cada criptomoeda. No início, em geral, elas eram passíveis de “mineração” caseira sem eletrônicos fabricados especificamente para isso, valiam dez mil vezes menos do que valia dez anos depois (um caso famoso foi o da compra da pizza com um só bitcoin no seu início), etc. Eis a razão pela qual todo militar de alta patente desaconselharia a adoção em larga escala da criptomoeda, já que pode comprometer a logística da defesa nacional em tempos de guerra. 2. Possibilidade de transmissão de capital inflacionário: agentes econômicos, por causa do mecanismo autorizado para criar moeda pelos bancos, podem comprar com esse dinheiro “criado” alguma criptomoeda e inflaciona-la. As implicações disso só Deus sabe inteiramente, porém, é certo que afeta a estabilidade artificialmente. 3. Não têm estabilidade melhor do que as moedas que pretende substituir, como se notoriamente sabe pelas valorizações contínuas em pequeno espaço de tempo das criptos em geral. Ora, haveria imenso estresse social se a moeda em curso desvalorizasse ou valorizasse 50% em um mês, razão pela qual, quando um país padece de tal mutação monetária hoje, ele só não sente tanto porque já empregou outra moeda ou indexador.

– Escassez das criptomoedas

Aparentemente escassa, pois algo mina a sua escassez real.

Exemplo: a estrutura de funcionamento da criptomoeda mina a base que confere escassez à moeda, já que a quantidade que existirá de criptomoeda (definida por complexas contas matemáticas em cada caso) em geral é programada e sabida desde logo. Uma moeda deve ser escassa a ponto de evidenciar o progresso econômico e social de uma nação, a ponto de se saber, por exemplo, que a mesma medida monetária comprava um conjunto de panelas e, agora, compra além disso um automóvel, porque os bens e serviços aumentaram naquela sociedade. O argumento de que a moeda deve crescer para acompanhar a oferta de bens e serviços, de origem keynesiana, acaba por afirmar que o valor dos bens e serviços (moeda) deve crescer com os bens e serviços (isto é, a moeda deve crescer com o crescimento do que a moeda representa). Isso, além de ser historicamente falso em todas as épocas anteriores à justificativa da prática do depósito irregular legal (século XIX em diante), defende uma posição contrária à estabilidade monetária.

3.2. Características físicas ou materiais da criptomoeda

Abstraindo a característica formal de facilitação de troca, considere-se uma hipótese igualitária simplificadora, isto é, que cada cidadão possui igual capacidade técnica e de manejo para usar a criptomoeda:

Divisibilidade: presente, pois é um ativo que se pretende primordialmente líquido (fácil troca) em meio digital.

Durabilidade: como toda moeda digital, sua durabilidade física está atrelada à durabilidade da tecnologia que a sustenta dentro da rede mundial de computadores.

Uniformidade ou Inalterabilidade ou Homogeneidade: novamente atrelada à tecnologia que a sustenta dentro da rede mundial de computadores e de sua segurança.

Manuseabilidade: sendo digital, e geralmente às mãos do portador, que anda sempre com seus aparatos eletrônicos, a moeda digital é manuseável. Sua capacidade de poder diminuir a quantidade com que se carrega, algo que só se muda por um aspecto de segurança como a senha digital (algo só o portador sabe), é um fator tecnológico útil.

Portabilidade ou Transportabilidade: depende de cada criptomoeda e de sua tecnologia no momento. Não vale a pena analisar isso atualmente sob pena de logo mais tornar a análise obsoleta.

Transacionabilidade ou Baixo custo de transação: idem para portabilidade.

4. Crítica da moeda digital

Novamente, antes de examinar suas características formais (em seu duplo aspecto) e materiais, vale destacar o papel do poder público nas moedas digitais, e seus argumentos.

O poder público garante que o fator de segurança da senha (só você sabe) e do smartphone que serve como moeda (só você tem) esteja aliado ao detentor de direitos (só você é). A desvantagem aqui é a clara concentração de funcionalidades em um só lugar, o que não é seguro, especialmente para o caso de perda.

Análise sociológica sobre a evidente concentração desvantajosa de funcionalidades: parece artificial o modo pelo qual os poderes públicos no ocidente a sustentam, de forma que mais provavelmente se espera estrategicamente um clamor popular sobre esse problema. Então, surgiria a proposta há tempos engavetada, por exemplo, um instrumento com tecnologia passiva (não requer bateria) ou similar.

Argumenta-se contra tal concentração as seguintes desvantagens: 1. Acelera o processo pelo fim da moeda física por ser esta menos fácil de ser usada agora, o que alguma hora pode impedir que haja circulação monetária fora do controle estatal e, consequentemente, 1.1. Pode impedir comunidades autossuficientes, 1.2. Pode impedir a soberania industrial tecnológica que sustenta o sistema digital se não houver atenção militar, 1.3. Pode facilitar a total tirania estatal. 2. Aumenta a possibilidade de inflação havendo só moeda escritural, a qual pode ser mais facilmente emitida pelas instituições autorizadas para tanto (isso depende de cada lei nacional e segurança da tecnologia empregada)

Análise sociológica sobre as desvantagens elencadas: os excluídos digitalmente, principalmente os menos capazes e idosos, são um obstáculo à eliminação do dinheiro efetivo ou papel-moeda. Talvez o fomento ao ódio intergeracional possa se juntar a uma futura eutanásia etária obrigatória (talvez até com nome de “terapêutica”), uma vez que elites avarentas não poriam “mão na consciência” para admitir que, entre outros problemas sociais, o financismo drenou os recursos do passado, os bancos perverteram a moeda, e o povo foi levado a não ter filhos e a ter péssimos hábitos, envelhecendo de forma ruim e solitária, entre outros problemas. Como dizem os sociólogos, é preciso um bode expiatório.

Por outro lado, na moeda digital há a vantagem do maior combate à lavagem de dinheiro via rastreamento do dinheiro. Numa economia que só usa moeda digital, a lavagem de dinheiro até teria fim, embora não os crimes (tipificados ou não em lei) que as sustentam.

4.1. Características formais

Facilitação de trocas das moedas digitais: facilita muito as trocas enquanto não há parte significativa da economia sem adesão à nova tecnologia.

– Estabilidade das moedas digitais: aqui reside o problema da criação monetária, uma vez que o dinheiro, sendo escritural, pode ser mais facilmente inflacionado a depender dos seguintes fatores: leis, quem recebeu primeiro o dinheiro inflacionado e quem o entesourou (exceção de Stueart ao efeito Hume-Cantillon).

Escassez das moedas digitais: Aparentemente escassa, pois algo mina a sua escassez real. No caso, enquanto houver a instabilidade monetária pela via dita anterior, ela não é escassa.

4.2. Características físicas ou materiais da moeda digital

Foi visto que a criptomoeda, como moeda digital, possui todas características materiais bem presentes, e que analisar a tecnologia atual delas é tarefa que pode, de um dia para outro, se tornar ultrapassada. O mesmo se diga, e até em maior grau, da análise da tecnologia empregada para a moeda digital nacional, porque esta está em constante melhoria pelo seu uso social constante.

5. Crítica à moeda CBDC (moeda digital do Banco Central)

Tudo que foi dito em abstrato da moeda digital, sobre as características formais e físicas, se aplica à CBDC, sendo esta uma espécie de moeda digital.

Especificamente, a CBDC tem a desvantagem de ser subserviente a uma potência ou grupo de interesse estrangeiro. Afinal, os bancos centrais nacionais (ou autoridades monetárias equivalentes) são notoriamente denunciados como instituições manipuladas pela Alta Finança Internacional, de forma que o uso de uma moeda do Banco Central claramente teria como consequência a virtual perda de soberania monetária.

Além disso, como já dito para a moeda digital, suas desvantagens são as mesmas, com pequenas diferenças: 2. Aumenta a possibilidade de inflação havendo só moeda escritural, a qual pode ser mais facilmente emitida pelas instituições autorizadas para tanto (isso depende dos tratados, acertos internacionais e segurança da tecnologia empregada).

A mesma análise sociológica sobre as desvantagens elencadas anteriormente pode ser replicada aqui, bem como a vantagem do combate à lavagem de dinheiro.

Ilustração sobre como a moeda digital ou CBDC é centralizado no fim da sua hierarquia estrutural e como podem surgir alternativas, como ao lado:

Fonte: Brett Scott, “A YouTube channel is born.”, Acesso dia 3/2/2024: https://alteredstatesof.money/brett-scott-youtube/

6. Crítica à moeda universal

É preciso distinguir os tipos de moeda universal: 1. Universalmente e domesticamente aceita e imposta, 2. Universalmente aceita e domesticamente não imposta, 3. Universalmente aceita e domesticamente proibida.

O tipo 1 é claramente um modo de acabar com a soberania das nações, sendo mais adequado para obra do Anticristo. É o tipo de moeda que geralmente se critica quando se fala de moeda universal.

O tipo 2 pode ser vantajoso enquanto o guardião dessa moeda se comprometer com a estabilidade monetária, gozar de confiança unânime no globo e usar moeda puramente fiduciária.

O tipo 3 pode ser vantajoso nas mesmas condições do tipo 2, e posto em prática somente quando a moeda universal ameace a soberania nacional por algum fator (por exemplo, quando o próprio espírito do Anticristo manobrar politicamente no globo para prejudicar alguma nação).

Como dito no artigo sobre “mutação monetária legal e não-emergencial”, são características do gestor da moeda de uso universal: 1. Não é um dos “jogadores no mercado internacional”, isto é, não imporá sua vontade e política aos demais. 2. Instituição soberana que não acata influências estrangeiras. 3. Instituição de prestígio internacional que quer a harmonia entre as nações. 4. Instituição com princípios católicos sobre estabilidade monetária. Assim, só pode ser o próprio Vaticano mediante algum braço temporal não gerido por clérigos diretamente, por não ser tarefa espiritual, mas gerido por pessoas que se dedicam inteiramente ao trabalho feito como prova de seus desprendimentos (por exemplo, voto de pobreza prático).

Análise sociológica do CBDC de cada país: caminha para ser ou para lançar uma modalidade de moeda universal na prática. Afinal, muitos bancos centrais seguem o BIS (Bank for International Settlements), uma instituição financeira internacional que atua como banco dos bancos centrais. Os poderes de chantagem e os lobbys que estão por detrás disso só Deus sabe. Tal processo, mais provavelmente em primeiro momento no tipo de moeda universalmente aceita e domesticamente proibida, seria relativamente rápido quando a sociedade estiver inteiramente digitalizada em termos de dinheiro.


[1] Comment rendre l’argent au peuple? Tome II, la monnaie internationale, p.144-145, 1938.
[2] Money Manipulation and Social Order,1944, C. III, p. 13
[3] Organic Society & Capitalism – Part III, “What to do with the Surplus of Currency”, Acesso em 3 de dezembro de 2021 <https://www.traditioninaction.org/OrganicSociety/A_027_Capitalism_3.html&gt;, anotado por Atila S. Guimarães. Primeira publicação: November 10, 2008.

Bíblia, Santos e teólogos sobre as características formais e materiais da moeda. Papel da soberania monetária, teses resumidas, respostas a objeções

Vejamos primeiro os textos de autoridades da tradição, e só depois minha organização, uma vez que os teólogos e peritos católicos especializados ou são santos ou são de grande estima por terem empregado mais tempo estudando a mesma questão.


Sumário

Textos autoritativos da tradição católica sobre as características formais e físicas da moeda
Teses resumidas sobre a finalidade, características formais da moeda e seus duplos aspectos
Resposta a objeções sobre as teses anteriores
Teses resumidas sobre as características físicas da moeda
Resposta a objeções sobre as teses anteriores

– Textos autoritativos da tradição católica sobre as características formais e físicas da moeda

Bíblia Sagrada comentando indiretamente as características formais da moeda

Todas as características formais: “Tendo ouvido isto, Abraão pesou na presença dos filhos de Heth o dinheiro que Efron tinha pedido, isto é, quatrocentos siclos de prata de boa moeda corrente (Quod cum audisset Abraham, appendit pecuniam, quam Ephron postulaverat, audientibus filiis Heth, quadringentos siclos argenti probatæ monetæ publicæ.)” Gn XXIII. Era “boa moeda corrente (probatæ monetæ publicæ)” porque havia já a característica de estabilidade (boa), facilitação da troca (moeda) e escassez (corrente), pois o que é abundante não pode ser correntemente usado como moeda.

Estabilidade monetária: “Ouvi isto, vós, que pisais os pobres e fazeis perecer os indigentes da terra dizendo: Quando passará o mês para vendermos as nossas mercadorias, e o sábado para abrirmos os celeiros, para diminuirmos a medida, aumentarmos o siclo, servirmo-nos de balanças falsas, para nos fazermos senhores dos necessitados por dinheiro, dos pobres por um par de sandálias e para lhes vendermos até as cascas do nosso trigo?” Amós VIII

Estabilidade monetária: “todas as avaliações se farão em siclos do santuário. O siclo tem vinte óbolos”, Levítico XXVII. A medida deve ser sagrada a ponto de estar no templo, como comenta o Pe. Juan de Mariana (Tratado y discurso sobre la moneda de Vellón. Instituto de Estudios Fiscales, Madrid, 1987. Primeira edição: 1581, p. 581).

Estabilidade monetária: “A tua prata converteu-se em escória; o teu vinho misturou-se com água” Is I, 22. Os padres exegetas relacionavam, pelo simbolismo do capítulo, ao lado das faltas espirituais dos sacerdotes da lei antiga. Por outro lado, se não houvesse mal algum no açambarcamento da moeda, não teria sido metáfora usada divinamente.

Estabilidade (“imagem”) e escassez (“inscrição”) garantidas pela soberania monetária: “Não o perdendo de vista, mandaram espias que se disfarçassem em homens de bem, para o apanharem no que dizia, a fim de o poderem entregar à autoridade e ao poder do governador. Estes interrogaram-no, dizendo: “Mestre, sabemos que falas e ensinas rectamente, que não fazes acepção de pessoas, mas que ensinas o caminho de Deus com verdade. É-nos permitido dar o tributo a César ou não?”

Jesus, conhecendo a sua astúcia, disse-lhes: “Mostrai-me um dinheiro. De quem é a imagem e a inscrição que tem?” Responderam: “De César.” Ele disse-lhes: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.” Não puderam surpreendê-lo em qualquer palavra diante do povo. Admirados da sua resposta, calaram-se.” S. Luc., XX., 20-26. Análoga parte em S. Mateus XXII, 15-22 e S. Marcos, XII, 13-21.

Santo Tomás de Aquino citando a Sagrada Escritura, Papas e santos em apoio a todas as características da moeda

“CAPÍTULO XIII – Como em um Reino ou qualquer Senhorio é necessário ter moeda própria, e as comodidades que disso se seguem, e as incomodidades do contrário

Depois do dito é preciso falar da moeda, por uso da qual se regula a vida dos homens, e assim mesmo por conseguinte qualquer propriedade, particularmente a Real, pelos muitos proveitos que dela se seguem. Donde é que o Senhor perguntando aos Fariseus, que debaixo de fingimento lhe tentavam, diz: “de quem é esta imagem e inscrição?”. E como respondessem que de César, deu contra eles a sentença do que lhe haviam perguntado: “Dai, pois, o que é de César a César, e o que é de Deus a Deus”, e parece o ter dito pelo fato da moeda ser uma razão, como muitas outras, de pagar o tributo.

Da matéria com a qual se faz a moeda, e como é necessário ao Rei tê-la em abundância, já tratamos (…). Ter moeda própria é necessário a qualquer governo, principalmente para o Rei, para o qual há duas razões.

A primeira, que se considera da parte do Rei, e outra, da parte do povo sujeito. Em relação à primeira a moeda própria é ornamento do Rei e de seu reino, e de qualquer outro governo, porque nela se inscreve a imagem do Rei, como a de César acima dito, de maneira que nada é mais próprio a perpetuar sua memória, dado que não há nada relativo ao Rei que passa tão frequentemente nas mãos dos homens que a moeda. E mais, por ser a moeda a regra e medida das coisas que se vendem, se mostra nela sua excelência, como que sua imagem seja no dinheiro a regra dos homens nos seus comércios; da onde se chama moeda, porque é um aviso de que não se deve cometer fraudes, pois aquela é a medida certa, para a imagem de César seja no homem como a imagem divina, como expõe S. Agostinho tratando desta matéria, e se chama a moeda Numisma, porque se alcunha com os nomes e figuras dos Senhores, como diz S. Isidoro. Da onde parece manifestadamente, que com a moeda resplandece a majestade dos Senhores, e isto é porque Cidades, Príncipes ou Prelados tiveram a grande honra de receber dos Reis o privilégio de alcunhar moedas.

Além disso, ter moeda própria redunda em proveito do Príncipe, como dissemos, porque ela é medida dos tributos e outras contribuições que se põe no povo, como mandava a lei divina acerca das oferendas, e reembolso dos sacrifícios. Ademais, alcunhar moeda por autoridade do Príncipe lhe é também proveitoso, porque a nenhum outro se permite fazê-lo com a mesma imagem e inscrição, como o ordena o direito das gentes.

E mesmo que um Príncipe ou Rei possa exigir um direito para a fabricação das moedas, ele deve ser moderado, não mudando o metal nem diminuindo o peso, porque é um dano ao povo, por ser a moeda medida das coisas, como fica dito; da onde mudar a moeda é mudar todos os pesos e medidas, e quanto isto desagrada a Deus se lê nos Provérbios, capítulo 20: “Dois pesos, e duas medidas, um e outro é abominável ao Senhor”. e assim foi repreendido gravemente o Rei de Aragão pelo Papa Inocêncio, porque havia mudado a moeda, diminuindo-a em detrimento do povo, e absolveu a seu filho do juramento com que se tinha obrigado a usar de tal moeda, mandando-lhe que restituísse ao antigo estado.

Com efeito, o valor das moedas favorece os empréstimos e o comércio, porque garante o reembolso dos empréstimos e o pagamento das vendas em moeda do mesmo valor. Se vê aqui porque um Estado deve ter uma moeda própria, mas também aqui se prova que ela favorece os interesses do povo.

Primeiro, porque é medida das trocas das coisas, e porque é mais conhecida do povo, porque muitos não conhecem as moedas estrangeiras, e assim facilmente podem ser facilmente enganados por quem é contrário ao governo real (…). Por fim, a moeda própria é de mais proveito, porque quando as moedas estrangeiras se comunicam nos comércios, é necessário valer-se do câmbio, quando tais moedas não valem tanto nas regiões estranhas como nas próprias (…)” [1].

Dom Nicole Oresme, bispo de Lisieux (1323-1382) citando a Sagrada Escritura para indicar características e funções da moeda

Manuseabilidade, portabilidade e divisibilidade: “Já que a moeda é o instrumento que serve para permutar riquezas naturais entre os homens, como vimos no capítulo anterior, foi necessário que tal instrumento fosse apto para tanto, ou seja, fácil de apalpar e manejar rapidamente, leve de carregar e tal que por pequena porção dele possam ser compradas e trocadas riquezas naturais em maior quantidade, juntamente com várias outras condições que serão examinadas a seguir.”

Escassez: “Foi conveniente, portanto, que a moeda fosse feita de matéria preciosa e pouco volumosa (…) não se deve permitir que grande quantidade desses metais [N.E.: ele falava do metal usado para cunhagem da moeda, o ouro], seja utilizada para outros fins se o que resta não for suficiente para fabricar moeda.”

Escassez garantida pelo Poder Público: “Por outro lado, não convém à ordem pública que tal matéria, isto é, o ouro ou a prata, seja abundante demais, pois, como diz Ovídio, foi por tal razão que foi descartada e retirada do uso humano a moeda de cobre. E por essa mesma razão deve ter sido disposto, para proveito dos homens, que o ouro e a prata, que são muito convenientes para fabricar moedas, não possam facilmente ser possuídos em grande quantidade, nem levianamente produzidos por alquimia, como alguns tentam e experimentam fazer. A estes direi: a tal empreendimento justamente se opõe a natureza, que resiste àquele que, em vão, tenta excedê-la e ultrapassá-la em suas obras.” [2].

Portabilidade, divisibilidade: “como a comunidade e cada um precisam fazer negócios, algumas vezes grandes, volumosos e de grande importância, outras vezes menores e, na maioria das vezes, pequenos, foi conveniente e necessário ter moeda de ouro, que é preciosa e pode ser carregada e contada facilmente, e que, também, é mais apta para fazer e conduzir os grandes negócios “

Escassez: “da mesma forma, foi conveniente ter moeda de prata, que é menos preciosa, e é mais apropriada para fazer compensações e equiparações nas trocas, e também para comprar pequenas mercadorias de preço baixo.” [3]

Estabilidade e inalterabilidade garantida pela soberania monetária: “Determinou-se outrora, com razão, a fim de evitar fraudes, que a ninguém fosse permitido fabricar moeda ou imprimir figura ou imagem no ouro e na prata de sua propriedade; mas, ao contrário, foi ordenado que a moeda e a impressão das inscrições fossem feitas por uma pessoa pública, com delegação de grande parte da comunidade, pois, como foi dito anteriormente, a moeda foi instituída para o bem da comunidade. Assim, tendo em vista que o príncipe da região é a pessoa mais pública e de maior autoridade, é mais conveniente e honroso que ele, mais do que qualquer outro, faça fabricar a moeda para toda a comunidade, e a assine por meio de uma impressão congruente com suas propriedades.” [4].

Estabilidade monetária: “Assim, não há dúvida de que o curso e o preço das moedas devem ser considerados no reino como uma lei e prescrição firme, que de maneira alguma se deve alterar ou mudar. Sinal disso é que todas as pensões e rendas anuais são fixadas a um preço determinado, a saber, a um certo número fixo de libras, soldos e denários. Disso resulta que não se deve jamais fazer alteração nas moedas a não ser que, por alguma eventualidade, a necessidade constranja a isso ou haja utilidade evidente para toda a comunidade. A esse respeito, diz Aristóteles no livro quinto de sua Ética, falando das moedas: “Certamente, a coisa que mais firmemente deve permanecer igual é a moeda.” [5].

Pe. Matteo Liberatore, S.J (1888)

Finalidade da moeda: “67. A moeda foi introduzida no mundo para a conveniência das trocas (…). Tal era a concepção de Santo Tomás de Aquino, que considera a moeda como uma invenção do homem feita em vista de facilitar as trocas. Tal é efetivamente o ofício que ela cumpre, e tal é a sua natureza, definida por seu objeto (…)

69. Quanto à matéria escolhida para constituir a moeda, o uso dos povos variou muito a este respeito, até que, entre as nações civilizadas, o ouro e a prata prevaleceram (…).”

Todas as características físicas: “As vantagens que apresentam o ouro e a prata são numerosas; basta-nos citar algumas:

I. Têm valor próprio, porque dado que o ouro e a prata servem a muitos outros usos, tem em si mesmo um valor, e como tal, são geralmente estimados e procurados.

II. São divisíveis sem nada perder de seu valor, isto é, cada uma de suas frações conserva uma parte correspondente deste valor, e que, reunidos, eles têm o valor de tudo que representam.

III. O transporte é fácil e sem grave embaraço para aquele que o carrega, o ouro e a prata concentram muito valor em um pequeno volume (…).

IV. Podem se conservar sem alteração ao menos sensível. Basta observar uma moeda de uma época mesmo muito antiga.

V. Podem, graças às suas durabilidades, receber a alcunha que garante seu valor e peso” [6].

“O “Traité élémentaire” de Hervé-Bazin resume assim as vantagens que apresenta para a função monetária o uso dos metais preciosos (…).

  1. Os metais preciosos têm um valor intrínseco relativamente alto.
  2. São fáceis de transportar.
  3. São inalteráveis.
  4. São homogêneos.
  5. São facilmente divisíveis (dividindo e subdividindo mantém seu valor relativo).
  6. Variam pouco em valor devido à dificuldade de extração.
  7. São maleáveis e facilmente impressos.
  8. Por fim, sua cor, som, dureza e peso dificultam sua falsificação.

 (Traité élémentaire, etc., C. II, Principes Généraux de L’échange, p. 269-270)

“Diz-se frequentemente que a moeda é o signo representativo do valor das mercadorias (…). Say mostra com evidente a falsidade e o perigo desta expressão. A representação de uma coisa não é nem a coisa mesma, nem seu equivalente. Ora, a moeda, pela matéria que é constituída (ouro ou prata) tem um valor próprio e é equivalente a outros valores (…).

Say mostra como a ideia falsa que a moeda é um signo algumas vezes conduziu os governos a alterá-las crendo poder fazê-lo sem danos para ninguém (aquilo que não é senão um signo, pouco importa o mais ou menos), enquanto na realidade esta alteração trouxe aos cidadãos o prejuízo mais grave, dado que lhes deu como valor inteiro um valor mutilado. No fundo, é um verdadeiro roubo da parte do Estado” [7].

Pe. Lamarche, O.P (1938)

Definição da finalidade da moeda: “um instrumento, um meio inventado pelos homens para facilitar as trocas, independentemente do tempo ou dos lugares, os produtos e serviços contra um valor mais ou menos teoricamente igual de produtos e serviços, sob o controle e garantia do Soberano ou do Poder Público.” [8].

– Teses resumidas sobre a finalidade, características formais da moeda e seus duplos aspectos

Finalidade ou função ou meta da moeda: instrumento inventado pelo homem para facilitar as trocas entre produtos e serviços contra um valor mais ou menos teoricamente igual de produtos e serviços, usualmente sob a garantia e controle do poder público.

Características formais da moeda: estabilidade, facilitação das trocas, e escassez. Ou seja, “boa moeda corrente (probatæ monetæ publicæ)”, Gn XXIII. Boa (estável), moeda (facilita trocas), corrente (escassa, pois se fosse abundante, não seria corrente, mas onipresente). Na observação divina do Evangelho, “de quem é a imagem e inscrição [deste dinheiro]?” (S. Luc XX), temos as características formais, como a estabilidade (probatæ ou a imagem do poder público) e a escassez (publicæ ou a inscrição pelo poder público). Todas giram em torno da facilitação das trocas, a principal característica.

Resumo das características formais e seus duplos aspectos:

– Facilitação das trocas

Contextual: só facilita a troca em um dado contexto. Exemplo: moeda de jogo de tabuleiro.
Real: facilita a troca a-temporalmente.

– Estabilidade

Aparente: aparentemente estável, pois algo mina a sua estabilidade real. Exemplo: moeda entesourada para manipulação futura do mercado.
Real: estável a-temporalmente.

– Escassez

Aparente: aparentemente escassa, pois algo mina a sua escassez real. Exemplo: avanço tecnológico ou descoberta ou estrutura de funcionamento da moeda e sua confecção que mina a base que confere escassez à moeda.
Real: é escasso a-temporalmente.

– Resposta a objeções sobre as teses anteriores

Objeção 1: a nomeação de três características formais da moeda é tão arbitrária e meramente socialmente aceita quanto o reconhecimento de três funções da moeda pelos manuais modernos de economia.

Resposta à 1: a característica formal da moeda aqui é definida como a característica independente da sua existência física, isto é, como nos conceitos metafísicos de “forma” e “matéria” a forma é aquilo que não depende da materialidade para existir. Por exemplo, a figura geométrica do triângulo, abstratamente considerada, é uma forma, e quando é desenhada se torna uma forma com matéria (superfície, cor, etc).

Objeção 2: as três funções da moeda (meio de troca, reserva de valor e unidade de conta) dos manuais modernos de economia são melhores e mais sintéticas.

Resposta à 2: os manuais modernos da Academia como um todo são impregnados de uma mentalidade revolucionária e, portanto, costumam obscurecer conceitos antigos ou criar novos para no meio obscurecer conceitos indesejados socialmente. São raras as obras de Economia Monetária, de 1980 para os anos 2020, que passam de três páginas versando sobre as características físicas da moeda e de seus atributos. A razão disso se observa recapitulando a realidade histórica monetária recente do ocidente: a noção de estabilidade monetária virou lenda e, por conseguinte, também a durabilidade da moeda, que constantemente perde valor para alguma alteração monetária. O processo de obscurecimento da noção real das funções da moeda se deu assim: a “facilitação das trocas” foi reduzida à função “meio de troca”, expressão bem mais genérica e aberta a uma interpretação de que pode ou não pode ser um meio de troca mais fácil. A função “reserva de valor” ficou evidentemente no lugar da “estabilidade” pela mesma razão dada ao “meio de troca”: o uso de um termo genérico permite que a reserva de valor seja cada vez menos de valor, como se observa no ocidente. Por fim, também a última função de “unidade de conta” é demasiadamente genérica, pois uma moeda alterada artificialmente só pode perder o seu significado de “unidade de conta” quando se apela ao conceito de estabilidade, e além disso é uma redundância para “escassez”, porquanto só se conta no dia-a-dia o que é escasso, razão pela qual a água nunca serviu como moeda.

Objeção 3: moeda deve ter a característica formal de soberania monetária.

Resposta à 3: a soberania monetária é o controle e garantia do poder público à estabilidade monetária pela via da segurança, assim como ele pode garantir a escassez pelas características físicas (antigamente, a adequada cunhagem ou impressão). No passado, a imagem do soberano era sinal da estabilidade monetária, e a inscrição da moeda pelo mesmo soberano, de sua escassez. Para ser moeda, não precisa ser necessariamente garantida e controlada pelo poder público, podendo o costume de uso do padrão-monetário ser tão forte que a moeda se torne corrente. Por isso, não é intrínseca à moeda a característica de garantia e controle estatal, ou seja, não é uma característica formal da moeda, e sim uma característica histórica e temporária desejável pelas circunstâncias do tempo.

Objeção 4: a principal finalidade da moeda é evitar a dupla coincidência de desejos ou o escambo entre produtos e serviços contra um valor mais ou menos teoricamente igual de produtos e serviços. Assim, a estabilidade não é uma característica formal da moeda.

Resposta à 4: evitar o escambo é facilitar as trocas, porém, o escambo pode ser evitado e mesmo assim pode não haver facilitação de trocas, como no caso das regiões com mutações monetárias frequentes.

Objeção 5: não há uma principal característica formal, todas são igualmente boas.

Resposta à 5: a moeda de valor estável não necessariamente facilita as trocas. Pode por exemplo ser estável e ter sua portabilidade afetada. Já um valor escasso não necessariamente garante uma troca facilitada, pois pode ser ter sua divisibilidade comprometida. Por outro lado, é impossível pensar em moeda e não pensar em troca, especialmente na facilitada, já que a moeda deve ser de uso corrente.

– Teses resumidas sobre as características físicas da moeda

Características físicas: segundo o que foi visto, principalmente com Hervé-Bazin e o Pe. Matteo Liberatore, e que se deriva da finalidade da moeda e suas características formais:

– Resposta a objeções sobre as teses anteriores

Objeção 1: cada característica física da moeda enumerada é arbitrária e meramente socialmente aceita.

Resposta à 1: a característica física da moeda é tão onipresente como a característica física do elemento ouro. Do ouro são inseparáveis o brilho, o peso e a cor, e se algum está faltando, ou não é ouro, ou há sujeira, ou está misturado com outro elemento. As criaturas geralmente exibem características que indicam suas finalidades. Assim também a moeda, a qual existe para cumprir sua finalidade de facilitar as trocas mostrando suas características formais. Assim, se um instrumento apresentado como moeda não for divisível, não facilitará as trocas, e o mesmo se diga de não ser transacionável. Se não for inalterável ou durável, não poderá ter a característica formal da estabilidade, que lhes é oposto. E se não for formalmente escasso, não pode ser portável ou manuseável, pois o que existe em abundância e serve de moeda em uma ampla região não pode ser portável ou manuseável, já que exige muita quantidade para se lidar.

Objeção 2: faltou a característica da estocabilidade ou baixo custo de estocagem.

Resposta à 2: a estocabilidade só se faz necessária se o dinheiro em uso tiver um valor intrínseco além da sua finalidade de facilitar as trocas, o que varia em cada época e circunstância. Quanto a ser estocável como característica material permanente, um objeto o pode ser sem que se facilite as trocas, como um saco de palha. E pode ser estocável sem ser escasso, como a batata em abundância, e pode ser estocável sem ser estável, como os alimentos rapidamente perecíveis.

Objeção 3: a moeda deve ter a característica material do valor intrínseco, como diz Hervé-Bazin citado pelo Pe. Matteo Liberatore. Fora disso, a moeda não pode ser privadamente entesourada, trazendo segurança, ou corre o risco de não ter essa característica de maneira garantida.

Resposta à 3: outrora o valor intrínseco, como o metal precioso, era útil porque a moeda tinha valor estável, como o ouro que hoje só tem estabilidade aparente, e poderia ser facilmente transformada em dinheiro para urgências de uma família, razão pela qual “vender suas joias” era sinônimo de apuro financeiro. Mas para cumprir sua finalidade de facilitar as trocas por bens e serviços de mais ou menos igual valor a moeda não exige valor intrínseco, embora isso possa ser desejável, a depender das circunstâncias e do instrumento usado como moeda. Além disso, enquanto poderes financeiros internacionais entesourarem commodities usadas como moeda no passado, é difícil ou quase impossível alegar que as moedas metálicas, commodities escassas do passado, hoje possuem valor estável mais do que aparente, já que a oferta mundial é manipulada por tais poderes. A história atesta tal manipulação global do ouro, por exemplo, o que condiz totalmente com o progressivo avanço técnico para a extração de minerais.

Objeção 4: não há razão para se ter moeda com características físicas da inalterabilidade e da durabilidade com o advento da tecnologia atual.

Resposta à 4: Uma moeda boa na antiguidade podia ostentar uma cunhagem tão original que fosse difícil a sua alterabilidade. De modo análogo, a moeda digital possui uma tão difícil “cunhagem” tecnológica que a torna inalterável. A moeda mantém sua característica material em aparatos digitais ou quaisquer outros, uma vez que para facilitar as trocas, ela precisa existir.


[1] Do governo dos Príncipes ao Rei de Cipro, livro II, Cap.13
[2] Pequeno tratado da primeira invenção das moedas (1355). Tradução de Marzia Terenzi Vicentini, Curitiba. Editora Segesta, 2004, 1336, C. II.
[3] Idem, C. III.
[4] Idem, C. V.
[5] Idem, C. VIII.
[6] Principles d’economie Politique, Traduzido do original em italiano de 1888, Librairie Religieuse H.Oudin, 2 edição, pg.132, 136-137
[7] Idem, pg.137-140
[8] Comment rendre l’argent au peuple? Tome I, la monnaie nationale, C.I, 3, 1938.

Metodologia, princípio diretivo, objeto e sociologia da Economia (história disso na economia mainstream e contraste com a economia católica)

Analisemos as convergências metodológicas e teóricas no desenrolar das teorias econômicas do século XX em um dado período de tempo, isto é, antes e depois de J. M. Keynes. Este artigo, apesar de ter foco maior na macroeconomia, traçará sempre um contraste com o pensamento econômico escolástico segundo muitos autores. Entrever-se-á como as teorias econômicas mainstream estão interligadas por elos comuns, ainda que haja disputa sobre certos tópicos que se fundam sobre as mesmas premissas. Ao final, um resumo bem sintético da metodologia e abordagem da Econômica Escolástica Católica será traçado.


Sumário

  1. Panorama do estado das teorias econômicas no início do século XX
  2. Elos comuns entre as teorias econômicas modernas até Keynes e depois:
    I. Busca por um Equilíbrio Geral da Economia
    II. Objeto da Economia oscilante entre individual e social ou ambas
    III. Sociologia implícita como pano de fundo
    IV. Linguagem ou modelagem matemática
  3. Outros elos comuns entre as teorias econômicas modernas a partir de Keynes
    I. Dissociação completa entre moral e atividade econômica
    II. Metodologia positiva ou empirista
  4. Conclusão
  5. Resumo da metodologia e abordagem da Econômica Escolástica Católica
  6. Fontes


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  1. Panorama do estado das teorias econômicas no início do século XX

Até o início do século XX, não havia muita preocupação com a economia tomada em seu conjunto, uma vez que muitos governos atuavam com base em uma ideologia econômica prescritora de mercados automaticamente regulados. A influência social católica, então, parece contribuir muito no ocidente para que a sociedade não se desagregasse velozmente na esfera econômica.

Com o advento de J. M. Keynes, de sua Teoria Geral e da grande depressão, a intervenção do governo na economia não era debatida com afinco entre os economistas. Sem romper inteiramente com os economistas que lhe precederam, Keynes atacou, no plano intelectual, a noção de que os mercados se ajustariam automaticamente. Também o economista inglês é tido por alguns como o fundador da macroeconomia moderna.

Posteriormente, com Hicks (“O sr. Keynes e os “clássicos”: uma sugestão de interpretação”) a aplicação da teoria de Keynes ganha impulso com base em uma metodologia já antiga: o uso da linguagem matemática e de gráficos no plano cartesiano. Afinal, o artigo tinha menos de 15 páginas e já continha mais gráficos que toda Teoria Geral.

Este artigo se volta para analisar como certos pressupostos metodológicos continuam a se manter inalterados no desenvolvimento da economia como se conhece hoje, mesmo sendo antigos.

  1. Elos comuns entre as teorias econômicas modernas até Keynes e depois

I. Busca por um Equilíbrio Geral na Economia

Durante a segunda metade do século XIX, a teoria econômica, de passo ritmado com a sociedade industrializada e beneficiada pelos avanços científicos do tempo, passa por transformações. Talvez o maior exemplo disso seja o fato de que o inglês Stanley Jevons, o austríaco Karl Menger e o francês Léon Walras, entre 1871 e 1874 e sem notícia da análise um do outro, sustentaram posições muito similares em torno do conceito de utilidade marginal.

“Com base nessas conclusões vão ser edificadas as escolas hedonistas: a escola psicológica e a escola matemática.” (Seção I, § 1°, A Reação Hedonista e a Constituição da Economia Pura, Paul Hugon, p. 391).

Hugon conta no mesmo lugar que a concepção da escola matemática é “mais mecanicista e também mais sintética. “O equilíbrio econômico” aparece como uma síntese majestosa do mecanismo econômico, apoiando-se, a um tempo, sobre a oferta e a procura, sobre os gostos e os óbices opostos à sua satisfação, sobre o prazer e o esforço”.

Marshall posteriormente vai aplicar aqueles conceitos graficamente dentro de um verdadeiro manual de Economia como existem nos cursos universitários hodiernos. Porém, ele não o faz para o nível macro da Economia, uma área ainda a ser aberta pela obra de Keynes.

É com esse pano de fundo que Keynes vai permear sua obra de uma busca pelo equilíbrio, e por isso cita pelo menos umas noventa vezes a palavra “equilíbrio” na sua famosa Teoria Geral.

De fato, num pressuposto de equilíbrio, como disse Weintraub “se sustenta o rigor e consistência lógica das teorias macroeconômicas e os trabalhos de microeconomia aplicada” (1985, p. 1345). Tal fato é notado por Dante Urbina, um economista de linha católica (C. 7, Economía para Herejes).

Em confirmação a isso, um historiador do pensamento econômico, E. K. Hunt, diz que a batalha ideológica entre macroeconomista se tornou mais branda no século XXI, pois cada um dos lados se “assentou, utilizando um modelo comum como arcabouço para suas discussões. Este modelo (isto é, o de equilíbrio geral dinâmico estocástico) permite a cada lado incorporar os seus próprios microfundamentos com a característica em comum de indivíduos maximizadores de utilidade” (C. 17, p. 732).

A busca quase religiosa por um ponto de equilíbrio matematizado é um claro ponto de divergência da economia moderna, seja microeconomia ou macroeconomia, ao pensamento escolástico. Este sempre primou pela análise da justiça em tópicos de política e economia, a qual algumas vezes o pensamento econômico atual e suas manias matemáticas parecem fazer de tudo, até mesmo apresentar equações fora da realidade, para não ter que abordar.

II. Objeto da Economia oscilante entre individual e social ou ambas

Atrelado ao individualismo em voga na ciência econômica do tempo, “o espetáculo oferecido, no início do século XIX, pela realidade econômica e social, em flagrante contradição com a ideia de harmonia entre interesses privados e interesses gerais, vai provocar — além da reação socialista — outro grande movimento de repulsa às conclusões liberais, ou seja, o intervencionismo” (Hugon, título IV, p. 267).

Apesar de a subdivisão de Paul Hugon intencionar uma explanação das muitas facetas do pensamento econômico, a intenção deste artigo é tão somente notar como, desde a concepção da macroeconomia, o objeto da ciência econômica parece oscilar, dependendo do autor, entre algo puramente social ou puramente individual, ou algumas vezes os dois, embora seja mais raro que o objeto seja declarado como moral.

Prova disso é a influente obra de Marshall de 1890 que apesar de não abordar a macroeconomia, muito influenciou o “parto” da mesma por Keynes. Marshall mantinha a seguinte definição: “a Economia é, de um lado, uma Ciência da Riqueza e, de outro, a parte da Ciência Social da ação do homem em sociedade que trata dos esforços do homem para satisfazer suas necessidades” (Princípios de Economia, Volume I, Capítulo I, Introdução, § 1).
Um exemplo no outro extremo é Hunt (C. 14), que embora note bem a falta da teoria neoclássica para com o problema social no princípio diretivo da microeconomia dominante, parece não apontar ao problema moral, como Pio XI (em 1931) que ao lamentar os erros da ciência econômica “individualista” afirmava que esta, ignorando “que a economia é juntamente social e moral, julgou que a autoridade pública a devia deixar em plena liberdade, visto que no mercado ou livre concorrência possuía um princípio diretivo capaz de a reger muito mais perfeitamente” (Quadragesimo Anno, no. 88).

Já o fundador da macroeconomia, J.M. Keynes, se distanciava do pai que preferia o termo “ciência social” (1917, pp. 87-8), e afirmava que a Economia era uma ciência moral. Assim compila O’Donnell (1989, p. 158) sobre as posições de Keynes:

“…e contra Robbins, a economia é essencialmente uma ciência moral e não uma ciência natural” (The Collected Writings of John Maynard Keynes, Macmillan, XIV p. 297).
“Quero também enfatizar fortemente o ponto de vista de que a economia é uma ciência moral.” (idem, XIV, p. 300).

O economista inglês também achava necessária a interdisciplinaridade da Economia, um tema evidente na sua descrição das qualidades de um ‘master-economist’:

“…o ‘master-economist’ deve possuir uma rara combinação de dons. Ele deve ser um matemático, historiador, homem de estado, filósofo em algum grau…Nenhuma parte da natureza do homem e de suas instituições devem ficar fora de sua preocupação.” (X 173-4). (O’Donnell, p. 164).

Porém, como se sabe, apesar dos muitos aderentes e autointitulados discípulos de Keynes, a macroeconomia posterior quase que faz surgir exclusivamente puros teóricos, com algumas exceções, entre as quais se incluem Friedman, economista a ser abordado aqui mais adiante como historiador e filósofo da ciência econômica.

Como visto com textos de Pio XI, o objeto da economia para a escola católica é social e moral, e também deve reter aquilo com que os escolásticos se preocupavam: “Força é portanto recorrer a princípios mais nobres e elevados: à justiça e caridade sociais.” (Quadragesimo Anno, 1931, no. 88).

Assim, é mais um ponto de discordância entre o pensamento econômico católico e o moderno para a macroeconomia.

III. Sociologia implícita como pano de fundo

Entre as várias correntes de Economia, a escolha da sociologia imbuída por detrás dos raciocínios e teorias são as mais díspares, e muitas vezes são ocultadas e consideradas irrelevantes, de forma que um economista pode ensinar certas posições teóricas e na política pública, relevar-se outro. Por isso, tomar como pressuposto que uma “sociologia implícita” imperou desde antes de Keynes parece o mais correto para caracterizar este elo comum na economia em qualquer de suas facetas modernas.

Reflexo disso é o desenvolvimento histórico das obras mais usadas em Economia, como os “Princípios de Economia” de Marshall, que foram aos poucos substituindo os Princípios de Economia Política de Mill (1848) nas universidades. Aquele livro de Mill, se comparado com as obras de Ricardo e Adam Smith “se assemelha a um manual, em confronto com centenas de “manuais de economia” hoje editados para cursos universitários”. Porém, ao contrário dos cursos modernos, “contém, detalhadamente, a ideologia do livre mercado de forma simples e com uma razoável dose de autocrítica. O manual moderno, por sua vez, expõe a ideologia do livre mercado negando que é uma ideologia e assumindo ares de verdade técnica, não passível de julgamento valorativo” (Raul Ekerman, apresentação da obra “Princípios de Economia Política” J. S. Mill).

Hugon já comentava como Walras e Pareto “são tão sociológicos quanto economistas; todavia, acham que o estudo do fenômeno econômico deve ser nitidamente separado do conjunto sociológico de que faz parte.” (1984, p. 396).

Algo diverso ocorria em outras vertentes de Economia, como no caso da escola socialista, a qual se tornou dominante e mais conhecida no globo com Karl Marx, cuja obra era abertamente crítica aos economistas de sua época, e seus juízos valorativos eram claros. Por isso, um historiador do pensamento econômico de linha marxista nota corretamente a atitude das escolas alheias:

“Toda teoria social se embasa em algumas premissas quanto à psicologia do comportamento humano e preconceitos sobre quais situações humanas são possíveis e eticamente desejáveis. A afirmação de que a economia utilitarista é livre de valores, que foi frequentemente feita por pensadores como Senior, Bastiat, Menger e Friedman, é absurda – como a leitura desses autores prontamente revela. Toda teoria social, se estudada atentamente, se apoia, implícita ou explicitamente, em alguma teoria psicológica e ética. A maioria dos economistas clássicos e todos os neoclássicos embasam sua teoria econômica numa concepção utilitarista, hedonista, da psicologia e da ética humanas.” (Hunt, p. 797, c. 19).

Já a sociologia para os católicos é bem estabelecida e passou os séculos com certeiras previsões, pois remonta aos tempos de S. Agostinho e suas previsões da queda do Império Romano na obra famosa “Cidade de Deus”. É, por assim dizer, o ponto principal de uma sociologia católica ou teologia da história em que todo católico deve se basear.

Nos últimos séculos, essa teologia da história melhor pôde explicar as mudanças sociais com o conceito de “Revolução”, tema introduzido no século XIX, e estendido até os dias atuais. Obras acerca do tema foram feitas pelos seguintes: Mons. Gaume, Monsenhor de Ségur, Donoso Cortés, Joseph De Maistre, Mons. Delassus, e a obra mais sistematizadora foi a de 1959 pelo brasileiro Plinio Corrêa de Oliveira, traduzida para inúmeras línguas. Documentos pontifícios saíram da pena de: Leão XIII (Parvenu à la Vingt-Cinquième Année, de 1902), e São Pio X (em documentos esparsos).

O pensamento sociológico contra-revolucionário não parou por aí nem se resumiu a esses autores e Pontífices, mas notar as boas penas do presente é tarefa que só a história futura poderá reconhecer com isenção.

IV. Linguagem ou modelagem matemática

Embora não fosse rebuscado no sentido de carregar grande número de argumentos, o método usado por Jevons, Menger e Walras para encontrar conclusões semelhantes era o método indutivo e matemático que partia do princípio hedonista de que o homem busca o máximo de satisfação com o mínimo dispêndio de esforço (é o começo do famoso homo oeconomicus na ciência econômica).

Ou seja, os hedonistas, além das teorias novas, insuflam ainda um “novo espírito” à pesquisa econômica, que vai permear a economia até o século XXI. “Este novo espírito é que leva à concepção de economia política como ciência exata, concepção essa à qual nos referimos e a cujo respeito exprimiu-se Walras desta forma: “A economia política só será ciência no dia em que se restringir a demonstrar aquilo que, até hoje, se tem limitado a afirmar gratuitamente.”

Este novo espírito está impregnado da preocupação de exatidão, bem como de objetividade e verdade; a ciência econômica foi depurada, pela reação hedonista, de preocupações filosóficas, éticas ou práticas.” (Seção I, § 2°, A Reação Hedonista e a Constituição da Economia Pura, Paul Hugon, História das Doutrinas Econômicas).

Entretanto, antecedentes clássicos já podiam ser encontrados com Ricardo. Já o notável historiador do pensamento econômico, J. Schumpeter, observava com relação à Keynes:
“Keynes era um tipo de Ricardo no sentido mais elevado da expressão. Mas também o foi na medida em que o seu trabalho é um exemplo notável daquilo a que chamavámos acima o “Vício Ricardiano”, isto é, o hábito de empilhar uma carga pesada de conclusões práticas sobre uma base tênue (…)” (Parte V, capítulo 5).

E em outro lugar: “Falando da teoria de Lord Keynes, o Professor Leontief chamou este procedimento de Raciocínio Implícito. A semelhança entre os objetivos e os métodos destes dois homens eminentes, Keynes e Ricardo, é de fato impressionante (…). Falo dos métodos de Ricardo e de Keynes para assegurar o resultado claro. Neste ponto, eles eram irmãos em espírito.” (Parte III, Capítulo 4, 2, nota 3).

Entretanto, é preciso notar como Keynes era crítico da excessiva matematização da Economia (algo que se conhecia na antiguidade clássica como “matematicismo”, a concepção de que as ideias, mesmo filosóficas ou morais, são solucionadas por matemática): “Uma proporção demasiado grande da recente economia “matemática” não passa de cozidos complicados, tão imprecisos como as suas hipóteses iniciais, que levam os autores a perder de vista as complexidades e interdependências do mundo real num labirinto de símbolos pretensiosos e inúteis.” (Teoria Geral, Parte IV, 21, III).

Mas foi na Inglaterra do Lord Keynes, sob a pena de seu professor Alfred Marshall, que a ciência econômica começou a introduzir, em seus livros-textos de uso geral, elementos de análise gráfica e matemática. Alfred Marshall (1842-1924) tinha sido um matemático primariamente, e depois que se tornou economista lecionou na Universidade de Cambridge. Embora já tivesse elaborado e difundido boa parte de suas ideias no início da década de 1870, só publicou uma versão integral de seu pensamento em 1890. “Seus Princípios de Economia foram, aos poucos, substituindo os Princípios de Economia Política, de Mill” (Hunt, p. 436), obra de 1848. Ora, o livro de Mill no máximo apresentava tabelas para justificar algum ponto de vista. Já o livro de Marshall possuía muitos gráficos, porém, nada em comparação com os manuais de economia atuais.

Portanto, era natural que a obra de Keynes, a quem muito devia a Marshall, sofresse alguma influência, ainda que sob a obra de seus sucessores intelectuais, da onipresente modelagem matemática. Na sua famosa teoria Teoria Geral, quase não se observa um gráfico, mas são muitas as equações e o pensamento é claramente construído como sob forma de raciocínio lógico.

Posteriormente, a macroeconomia, seja de tradição Keynesiana ou não, vai se permear de matemática, como se sabe.

O contraste com os escolásticos é abordado por Raymond de Roover já em 1971: “Vimos recentemente um autor explicar o declínio do feudalismo por meio de uma série de equações com um número infinito de incógnitas (Edward J. NELL, Economie Relations in the Decline of Feudalism: an Examina/ion of Economie lnterdependence and Social Change, in History and Theory. Studies in the Philosophy of History, VI, 1967, pp. 3-13-350). Permitimo-nos permanecer céticos face a este imponente aparato científico (…).

Poderíamos igualmente criticar o uso abusivo da estatística e a fé cega na magia do computador eletrônico, que alguns acreditam fazer maravilhas. Vivendo numa época em que faltavam dados estatísticos e em que o espírito das pessoas não estava orientado para a utilização da matemática, os escolásticos nem sonhavam, naturalmente, em aplicar os métodos quantitativos às ciências sociais.” (ROOVER, Trechos da p. 9-13, e p. 16-19)

  1. Outros elos comuns entre as teorias econômicas modernas depois de Keynes

Muito embora a teoria econômica após o Magnum Opus de J. M. Keynes tenha tomado inúmeros aspectos e pressupostos, aqui enunciaremos meramente dois, que foram a nova metodologia oriunda chamada “revolução formalista”, dominante na pesquisa acadêmica nos anos de 1950 em diante, e a dissociação completa entre moral e atividade econômica, algo que já podia ser entrevisto nas obras anteriores.

I. Dissociação completa entre moral e atividade econômica

Um dos aspectos mais relevantes quando se fala de ciência, seja social, humana ou mesmo exata, é o problema do pano de fundo sociológico por detrás do ensino das mesmas, cujo tratamento já fora abordado aqui. De maneira similar, o mesmo ocorre quando a ciência em questão envolve a análise da atividade humana. Então, a análise de algum moralista geralmente entra em cena.

Se Keynes dizia que os homens práticos que se julgam livres de qualquer influência intelectual são habitualmente escravos de algum economista morto, aqui se pode dizer que tais homens práticos que se julgam livres de qualquer influência intelectual também são habitualmente adeptos de algum filósofo moral morto, ainda que este tenha sido avesso a qualquer juízo valorativo sobre qualquer tipo de conduta.

Neste embalo, Raymond de Roover, após comentar o impacto da história da Análise Econômica que um póstumo J. A. Schumpeter tinha publicado, nota a dissociação histórica entre moralidade e atividade econômica a partir do distanciamento daqueles juristas da Escola de Salamanca que Schumpeter alegava terem chegado “mais perto do que qualquer outro grupo de terem sido os ‘fundadores’ da economia científica” (The scholastic doctors and the philosophers, p. 93):

“No entanto, não é apenas a terminologia que difere, são sobretudo os modos de pensar e os pontos de vista que se chocam. Enquanto os economistas contemporâneos veem o sistema econômico como um mecanismo em que todas as partes se encaixam, esta ideia era estranha aos escolásticos que se colocavam outras questões e encaravam os problemas econômicos do ponto de vista da justiça distributiva e da justiça contratual ou comutativa. Para eles, a análise reduz-se essencialmente ao exame da validade de uma série de contratos, uns lícitos e outros ilícitos ou duvidosos. Em outras palavras, o ponto de vista dos escolásticos é o do jurista e do moralista, e não o do economista. Embora os escolásticos tenham tido de lidar com problemas econômicos, – dificilmente o poderiam ter evitado -, não os consideraram como um todo, mas isolaram-nos no âmbito de contratos, aparentemente sem relação entre si e livremente celebrados livremente pelas partes. Assim, a questão do preço justo era discutida em relação ao contrato de emptio-venditio ou compra e venda, e a da usura em relação ao mutuum ou empréstimo” (Raymond de Roover, p. 18-19).

Mesmo a economista Joan Robinson, simpática ao pensamento Keynesiano, dizia (1971, C. XIV) que “os economistas da escola do laissez-faire pretenderam abolir o problema moral demonstrando que a busca do auto interesse por cada indivíduo resulta no benefício de todos”. Em seguida, mencionava alguns objetivos que ela recomendava à sua geração. Tal pensamento já era claro atestado de que havia uma dissociação entre moralidade e atividade econômica em curso no ocidente, e embora tivesse afetado primariamente a microeconomia, sua “contaminação” da economia ficava claramente retratada, ainda mais que Robinson tratava de algo no ponto de vista social e já inteiramente numa nova onda de política macroeconômica (anos de 1970).

Foi bem estabelecido o contraste do pensamento econômico escolástico ao atual: “Enquanto os economistas contemporâneos veem o sistema econômico como um mecanismo em que todas as partes se encaixam, esta ideia era estranha aos escolásticos que se colocavam outras questões e encaravam os problemas econômicos do ponto de vista da justiça distributiva e da justiça contratual ou comutativa.” (ROOVER, Trechos da p. 9-13, e p. 16-19)

II. Metodologia positiva ou empirista

Nos anos de 1950, segundo se argumenta, houve uma revolução metodológica apelidada por alguns de ‘revolução formalista’, em que se alegava que havia maior preocupação com a forma do que com o conteúdo.

O paper de 1953, escrito por Milton Friedman, “The methodology of positive economics” se encontra justamente nesse tempo, e é considerado por muitos como o mais conhecido e mais citado trabalho no século XX dentro do tema da metodologia econômica (D. Wade Hands in Mäki, part 3, 5, p. 163). Como o filósofo Daniel Hausman colocou: “É o único paper sobre metodologia que um número grande, senão a maioria dos economistas leram” (Hausman 1992, 162).

O economista Mark Blaug admite que quando leu o paper à época, “estava totalmente convencido pela ideia de que os pressupostos de uma teoria realmente não importavam desde que a teoria predisesse com precisão. A proposição agora familiar de que há algo errado com uma teoria na caixa-preta que prevê com precisão, mas não fornece nenhum mecanismo para explicar essas previsões, não me ocorreu à época.” (Mark Blaug in Maki, part 5, c. 14, p. 369).

Dentro da economia, algumas diferenças metodológicas se encontram entre liberais, mais especificamente entre austríacos e seguidores de Friedman. E. K. Hunt nota a diferença entre eles: “de modo geral os austríacos defendem uma abordagem racionalista à teoria econômica, enquanto Milton Friedman e seus seguidores defendam a abordagem empírica.” (p. 715).

É interessante a observação do já citado Mark Blaug: Friedman não seguiu muito seu paper de 1953, porque escreveu posteriormente “A Monetary History of the United States, 1867–1960 (1963)” com Anna Schwartz, que foi um exame histórico de certa teoria monetária, “enquanto o resto dos economistas profissionais puseram sua fé em finas corroborações por meio de regressões lineares” (Mark Blaug in Maki, part 5, c. 14, p. 373).

Esse insight de Blaug acerca de como a profissão do economista era naquele tempo do paper casa junto da alegação de Romer de que há um problema com a macroeconomia:
“O problema com a macroeconomia é pior [N.E.: que o problema na teoria física, enunciado por Lee Smolin em 2007]. Tenho observado mais de três décadas de regresso intelectual” (Paul Romer, p. 1).

Se a economia em geral passa pelo problema de metodologia inadequada, voltar às raízes escolásticas não passa pela cabeça de um mundo neopagão. Afinal, os “escolásticos abordavam os problemas econômicos de uma forma completamente diferente dos economistas atuais que, pelo menos em teoria, se não na prática, rejeitam de início quaisquer preocupações morais e se limitam deliberadamente a examinar o funcionamento do sistema econômico.” (ROOVER, Trechos da p. 9-13, e p. 16-19)

  1. Conclusão

Este artigo pretendeu modestamente resumir alguns principais aspectos metodológicos e de pressupostos que sempre permearam o pensamento econômico com foco no macroeconômico antes e depois da obra mais conhecida de J. M. Keynes sobre o tema. Ademais, quis-se travar um contraste breve com o pensamento escolástico. A título de conclusão, analisaremos aqui como a permanência da antiga metodologia e dos pressupostos estão presentes e inter-relacionadas.

Em primeiro lugar, nota-se como a busca incessante por um ponto de equilíbrio, inicialmente presente na dita microeconomia, permeou a macroeconomia, seja o equilíbrio tendo caráter Walrasiano, ou caráter “não-Walrasiano”, como identifica Deleplace (p. 131ss) ao identificar teorias do equilíbrio e do desequilíbrio walrasianos e não-walrasiano na “escola neo-keynesiana”.

A permanência da sociologia implícita e moldável é atestada por E. K. Hunt, que nota como, após o arrefecimento de uma batalha intelectual no ensino da macroeconomia, um determinado consenso permite ao pesquisador poder “se ver como sendo completamente livre de ideologia, pois estará apenas utilizando um modelo aceito e que pode ser mexido a fim de chegar a resultados mais progressistas ou mais conservadores. O próprio modelo define o espaço em que se dão as discussões de macroeconomia e questões que não aparecem naquele espaço (por exemplo, os direitos de propriedade) jamais são levantadas.” (Hunt, p. 732). Isso também se inter-relaciona estreitamente com o objeto oscilante da economia: por vezes individual, por vezes social, mas quase nunca moral, como a afirmar que a economia reconheceu que a dissociação completa entre moral e atividade econômica, algo nunca pensado pelos juristas escolásticos, foi um erro.

Já a linguagem ou modelagem matemática, em harmonia com a frenética procura por um “Santo Graal” de equilíbrio econômico, continuou a marcar presença em todo ensino acadêmico de Economia. Exemplo impressionante disso é a familiaridade com a curva de Phillips (curva que descreve, segundo uma concepção antiga dos anos de 1950, a relação inversa entre desemprego e inflação). Ela pode assumir diversas formas dependendo do “framework” ou teoria com a qual se trabalha, isto é, se no longo ou no curto prazo, se com expectativas racionais ou adaptativas, etc. Ao final de qualquer graduação de Economia, o aluno mediano só tem a certeza de que a referida “curva de Phillps” é uma curva, e que pode ser descrita por diversas fórmulas.

Talvez entrevendo isso, o historiador de economia e professor da USP, Paulo Hugon, tenha dito de Schumpeter: “O instrumento matemático é por ele utilizado com conhecimento de causa, contrastando assim com o abuso das fórmulas que conduziram muitos economistas, sobretudo muitos discípulos de Keynes, a fazer da abstração um fim e da obscuridade uma ciência.” (J. Schumpeter, a economia Dinâmica e a macroeconomia, 1, p. 415).

Por fim, deve-se notar como persistiu a metodologia positiva ou empirista no meio disso. O papel de tal metodologia, pelo menos na prática, é o de travar todo debate sobre as bases morais e filosóficas da economia. Ainda que alguém diga que o debate sobre isso se esgotou e hoje já se sabe como agir, o fato é que os golpes financeiros, corporativos e econômicos se avolumam e continuam a bater recordes, seja no mundo, como no Brasil, do qual o exemplo mais recente é o golpe financeiro da história do Brasil pela obras dos três maiores investidores e “modelos de gestão” do país (Lemann, Sicupira e Telles) com a sua gigantesca empresa “Americanas” no início de 2023.

  1. Resumo da metodologia e abordagem da Econômica Escolástica Católica

Seu princípio diretivo: justiça e caridade.
Seu objeto: social e moral.
Seu método: predominantemente escolástico, anti-empiricismo.
Sociologia: católica tradicional (atualmente contra-revolucionária).

Fontes

E. K. Hunt, História do Pensamento econômico, 3ª edição, Elsevier, 2011. Primeira edição: 1972. Edição citada: terceira, 2011.
Dante Urbina, Economía para Herejes, Amazon Edition, 2015.
Pio XI, Quadragesimo Anno: 40º aniversário da Rerum novarum (15 de maio de 1931). Retirado de: https://www.vatican.va/content/pius-xi/en/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_19310515_quadragesimo-anno.html
Schumpeter, Joseph A. History of Economic Analysis. Edited from manuscript by Elizabeth Boody Schumpeter, 1954.
Keynes, J. M. “Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”, Tradução Manoel Resende, Editora Saraiva (edição de 2012), 1936.
Histoire de la pensée économique (2008) – Ghislain Deleplace, Christophe Lavialle
Marshall, Alfred. Princípios de Economia, Volume I, 1890. Coleção Os economistas.
R. M. O’Donnell, Keynes, Philosophy, Economics and Politics. The Philosophical Foundations of Keynes’s Thought and their Influence on his Economics, 1989.
Paul Hugon, História das Doutrinas Econômicas, Atlas, 14ª edição, 1984
Raul Ekerman, apresentação da obra “Princípios de Economia Política” J. S. Mill, Coleção “Os pensadores”, Abril, 1996
Hausman, Daniel (1992). “Why look under the hood?” In Essays in Philosophy and Economic Methodology. Cambridge: Cambridge University Press
Paul Romer. The Trouble With Macroeconomics. Stern School of Business New York University, 2016.
Keynes, The general theory: part I – preparation. Cambridge: Macmilian. v.13. The collected writtings of John Maynard Keynes. 1973, p.408-409.
E. R. Weintraub, General Equilibrium Analysis: Studies in Appraisal, Cambridge University Press, Cambridge, 1985.
John Neville Keynes, The Scope and Method of Political Economy, 4th ed., Macmillan, 1917
SCHUMPETER, Joseph A. History of Economic Analysis, 1954.
Raymond de Roover, Conférence Albert-Le-Grand 1970, La Pensée Économique des Scolastiques Doctrines et Méthodes, LIBRAIRIE J. VRIN 6, Place de la Sorbonne Paris, 1971.
Joan Robinson, Liberdade e Necessidade, Zahar Editores, Rio, 197.

Escola de Salamanca e tradição posterior contra controle de preços generalizado. Aplicações para controle generalizado como consumo e oferta

Cardeal João de Lugo S.J.

A seguir, autores que falavam, dentro do viés moral-jurídico, sobre a possibilidade de controle de preços. Então, faço a aplicação dos textos estudados para o controle generalizado de consumo e oferta, e finalizo com um resumo dos textos em duas proposições (sem contar com as minhas contribuições, que não são autoritativas, e sim opinativas).

Raymond de Roover sobre o conjunto do pensamento Escolástico acerca da dupla característica do preço (confirmado por Chafuen [1]):

Os escolásticos tardios insistiram em que o preço justo era estabelecido pela comunidade. Isto poderia ser realizado de duas maneiras: pelo processo de mercado ou por decretos públicos. Este último era o “preço legal”, em oposição do “preço natural”, que era determinado pela estima comum (a valoração do mercado) [2]

Pe. Francisco de Vitória, O.P. e Cardeal Juan de Lugo citados por Chafuen no mesmo lugar

“(…) muitos escolásticos tardios chegaram à conclusão de que as autoridades podiam fixar o preço legal de alguns produtos, particularmente nos casos de monopólio ou quando os vendedores ou compradores de um “bem muito necessário” [3] eram poucos (oligopólio).
Juan de Lugo assinalou que, diante de todas as circunstâncias e fatores mutáveis, a maior parte dos doutores concordava que era “impossível estabelecer uma regra fixa” [4]. Os escolásticos tardios nunca questionaram o direito governamental de fixar preços [5]; questionaram, sim, a conveniência de fixá-los.”

Cardeal Juan de Lugo, S. J. (1583-1660)

Comenta Huerta de Soto este e o próximo jesuíta citado aqui [6]: “O cardeal jesuíta Juan de Lugo, se perguntar qual seria o preço de equilíbrio, já em 1643 chegou à conclusão de que isso dependia de tantas circunstâncias específicas que somente Deus poderia saber («pretium iustum mathematicum licet soli Deo notum»)” [7]

Pe. Juan de Salas, S. J.

No mesmo lugar, o professor Huerta de Soto: “Referindo-se às possibilidades de conhecer as informações específicas com as quais os agentes econômicos lidam no mercado, chegou à conclusão de que essas informações são tão complexas que “quas exacte comprehendere et ponderare Dei est non hominum” [8], ou seja, que somente Deus, e não os homens, pode entender e ponderar exatamente as informações e o conhecimento com os quais um mercado livre lida com todas as suas circunstâncias particulares de tempo e lugar.”

D. Geraldo de Proença Sigaud, D. Antonio de Castro Mayer, Plinio Corrêa de Oliveira e o economista Luiz Mendonça de Freitas (1964)

“A prática revela que, adotado o tabelamento dos preços em qualquer setor, a tendência será de expandir-lhe a incidência, para evitar distorções no mercado. Daí por que deve ser feito o maior esforço possível para evitar tal medida, adotando-a as autoridades apenas em situações de emergência e a título precário. O barateamento do custo de vida deve ser procurado mediante oferta abundante e regular de gêneros à população, como se acredita que o sistema aqui proposto poderá fazer, e não criando artificialismos que tendem a conferir excessiva rigidez à economia do mercado, impedindo que ela se adapte às mutáveis condições da realidade com a necessária rapidez.” [9]

Aplicação do controle dos preços para controle dos ofertantes, do consumo, etc (subseção original minha)

Se o valor dos bens e serviços, que são espelhados nos preços, só pode ser conhecido por Deus, como afirma o Cardeal Juan de Lugo, é evidente que o controle generalizado de bens e serviços, como num sistema econômico planificado (tal como soviético russo) é um ato de arrogância estatal para com Deus, e deve ser rechaçado como pecado que clama aos céus e brada a Deus por vingança, uma vez que:

Oprime órfãos e viúvas (ou a qualquer desamparado) ao:

• No caso do controle de ofertantes, pois um simples mau cálculo do planejamento estatal, como é comum, pode quebrar empresas levando à opressão oprimir órfãos e viúvas.
• No caso do controle de consumo, por impedir igualitariamente que se consuma o que é necessário aumentando a burocracia e oprimindo órfãos e viúvas.
• Em ambos os casos, por suscitar a falta de caridade geral, o que gera aumento de todo tipo de pecado na sociedade.

Não dá o salário a quem trabalha:

• No caso do controle de ofertantes, pela mesma razão dada antes, impedindo que o trabalhador receba seu salário.
• No caso do controle de consumo, pela mesma razão dada antes, impedindo que o trabalhador receba seu salario.
• Em ambos os casos, por suscitar a falta de caridade geral, o que gera aumento de todo tipo de pecado na sociedade.

Resumo em proposições

  • A regulação por preços ou a preço oficial, a regulação por bens e a regulação por serviços, não são intrinsecamente más enquanto não sejam generalizadas.
  • É contrário à justiça que a regulação por preços ou a preço oficial (como no falido modelo soviético), a regulação por bens e a regulação por serviços sejam generalizadas numa economia.

[1] CHAFUEN, Alejandro A. Fé e liberdade: o pensamento econômico da Escolástica Tardia. LVM Editora, 2019. p. 192-193
[2] ROOVER, R. “Scholastic Economics”. In: New Catholic Encyclopedia, 1955.
[3] VITORIA. De iustitia, qu. 77, art. 1, p. 120
[4] LUGO. De iustitia et iure, Livro II, disp. XXVI, sec. IV, p. 279.
[5] ROOVER, R. “The Concept of the Just Price”, p. 425.
[6] Jesús Huerta de Soto, “Juan de Mariana y los escolásticos españoles”, Dendra Médica. Revista de Humanidades, 12, 1 (2013): 38. Link: https://dokumen.tips/documents/articulo-juan-de-mariana-y-los-escolasticos-espanoles-rey-y-la-institucion.html?page=1
[7] Juan de Lugo (1583-1660), Disputationes de iustitia et iure, Sumptibus Petri Prost, Lyon 1642, volumen II, D.26, S.4, N.40, p. 312.
[8] Juan de Salas, Comentarii in secundam secundae D. Thomae de contractibus, Sumptibus Horatij Lardon, Lyon 1617, IV, número 6 p. 9
[9] Catolicismo Nº 167 – Novembro de 1964, Declaração do Morro Alto, 9. Política de preços, Programa de política agrária conforme os princípios de “Reforma Agrária – Questão de Consciência”, livro de 1964. Link: https://www.pliniocorreadeoliveira.info/1964_167_CAT_Declara%C3%A7%C3%A3o_do_Morro_Alto.htm