Frases falsas sobre a moralidade católica ante produtos, contratos e instrumentos financeiros atuais. Citações de Papas, Bíblia, etc

A pedido, analisa-se as frases oriundas das mais comuns falsas concepções acerca da moralidade nos principais produtos e instrumentos financeiros no mercado, especialmente os que dizem respeito ao tema da usura.

Se, por um lado, pretendi fazer uma análise moral disso, não almejo ser supremo juiz católico nessa matéria, que compete à hierarquia eclesiástica. Por isso, citei o quanto pude aos documentos católicos.

Não serão vistos os produtos e serviços fora do âmbito regulatório do Sistema Financeiro Nacional ou SFN (Bacen, CVM, etc). Tal abordagem, pelo menos em português, é inédita. Geralmente só se ensina conhecimentos bancários e do mercado financeiro sem nenhuma base moral.

Como dizia o católico Marquês de la Tour-du-Pin la Charce: “Deter a usura é curar a gangrena da Economia Social moderna”. “Empêcher l’Usure, c’est guérir le chancre de l’économie sociale moderne.” (Vers un ordre social chrétien, p. 85)

– Frases falsas oriundas de concepções imprecisas acerca da moralidade católica ante produtos, contratos e instrumentos financeiros atuais

“Quem toma empréstimo com usura ajuda a usura”

S. Tomás, Suma Teológica II-II, q. 78, art. 4 (tradução de Alexandre Correia): “devemos dizer que de nenhum modo é lícito induzir outrem a dar dinheiro a título de mútuo, sob a condição de lhe pagar usura. É-nos lícito porém recebê-lo nessas condições, de quem estiver pronto a fazê-lo e tiver disso a prática, tendo nós em vista a satisfação de uma necessidade nossa ou alheia. Assim como é lícito ao que caiu nas mãos de ladrões exibir os bens que traz consigo e deixá-los cometer o pecado de roubo, para não ser morto por eles, seguindo nisso o exemplo dos dez varões que disseram a Ismael: Não nos mates, porque temos no campo tesouros (Jr 41, 8), como se lê na Escritura.”

“Nada do que o Banco Moderno faz é usurário”

Reserva fracionária é o depósito irregular rejeitado pelo direito romano. O que o paganismo rejeitou, o neopaganismo exaltou. Assim funciona o banco moderno: a moeda atual é criada pelos bancos privados com chancela do poder público.

Nisto consiste o depósito irregular: contrato para guardar em depósito um bem ou moeda e o guardador empresta o que foi guardado, ganhando ou não um lucro em cima disso.

Huerta de Soto, no seu livro “Moeda e ciclos bancários” (2013), mostra a vedação disso já pelo direito romano. Quando ressurgiu na decadência da idade média, sofreu críticas de quase todos os escolásticos tardios.

No caso dos bancos atuais, sempre se empresta o dinheiro alheio com lucro, o que é agravante moral. Posteriormente, Alfred Marshall, no século XIX, provou matematicamente como isso gera inflação. Suas fórmulas são ensinadas na academia, já a análise moral é há séculos olvidada.

Se houvesse seriedade no direito atual, quem emprestasse o que não tem seria julgado por depósito irregular (fraude no depósito, conhecido desde o direito romano), falsificação (anotava que tinha o que não tinha, criando dinheiro), e usura (cobrava pelo que não tinha direito algum, isto é, o dinheiro emprestado que fora criado).

Diz o Pe. Dempsey (The Functional Economy, The Usury element in inflation, Englewood Cliffs, N. J. Prentince Hall, Inc. 1958, p.435-436): depósito irregular emprestado cria inflação e esta gera “ganhos de empréstimos de mutuum por parte de pessoas e instituições que não pouparam e, portanto, não têm os direitos morais extrínsecos à compensação”.

Com o advento da reserva fracionária, tudo isso é legal. Como as leis da lógica continuam, dinheiro é criado e somos nós que sofremos com perda de poder de compra. O banco no conceito moderno tem este aspecto usurário: ele inexistiria sem a alquimia financeira da reserva fracionária.

“Trabalhar para banco é compactuar com a usura”

Não necessariamente, dependendo do que se faz num Banco, o qual presta serviços importantes à sociedade. Aliás, é o motivo pelo qual os amigos da mentira de que “a Igreja reconheceu o erro na usura” e amigos da especulação financeira desenfreada costumam criticar bancos sociais e públicos.

Bancos foram criados pelos cruzados, que tinham a força para proteger grandes quantias em seu poder, tamanho para ter agentes em todo mundo daquele tempo e habilidade para criar papéis bem únicos para comprovar a identidade dos clientes detentores desses mesmos tesouros. Hoje o banco possui ampla função social também, oferecendo, além de financiamento importantes diversos para empreendedorismo, a dinamização da economia popular mediante a aquisição e utilização de bens de capital importantes, casas, terrenos, etc.

“Juros compostos é usura”

Juro composto não é intrinsecamente mal ou em si mesmo usurário. Urge não cair em simplismo na análise da usura (vendo só se é juro composto ou não). Importa a natureza do contrato, especialmente.

Exemplo de juro composto legítimo: investir em ação, pois essa costuma ser reinvestida, gerando juro composto.

A usura continua a ser pecado. A Igreja disse somente que se podia pressupor título extrínseco num contrato de empréstimo, dado o avanço do comércio (impossível analisar a fundo todo empréstimo hoje).

Já o mundo islâmico, em geral, é preso à palavra e época do falso profeta Maomé, o que obriga a proibir todo juro como usura.

“Se é empréstimo para produção, tudo bem, se para consumo, não”

Sua mera diferenciação não faz com que o empréstimo seja legítimo ou não.

Bento XIV, na Vix Parvenit (1745), reconheceu que o juro não se devia à finalidade do uso do empréstimo (3, II). Antes S. Tomás também já argumentava assim (Super Sententiis, II, dist 37, a.6, ad 4).

“Títulos extrínsecos foram uma forma da Igreja reconhecer que não existe usura”

Uma coisa é o contrato de empréstimo e a exigência de juro só por ele, outra é a exigência de remuneração adicional por algum fator extrínseco, como notou o Cardeal Cajetano já no século XV.

Porém, conforme Aerts (2012, p. 47, La religione dell’economia, l’economia nella religione Europa 1000-1800), a partir do fim do século XII, era possível distinguir os seguintes títulos nas obras dos juristas:

Lucrum Cessans: lucro renunciado, quase o mesmo que o custo de oportunidade.

Periculum Sortis: risco de não recebimento no vencimento, ou inadimplência.

Damnum Emergens: dano sofrido pelo mutuante em razão do empréstimo concedido.

Poena detentoris ou poena conventionalis: penalidade pelo atraso no pagamento (conhecido como juros de mora hoje).

Stipedium laboris: pagamento pelo trabalho (algo como a taxa administrativa atual).

Titulus Legali: taxa legal emanada de um governo.

Bento XIV (1745) já reconhecera na Encíclia Vix parvenit: “3. Com isto, pois, não se nega que às vezes podem concorrer com o contrato de empréstimo alguns outros assim chamados títulos, não de todo atinentes ou intrínsecos à própria natureza do empréstimo; e que destes surja uma causa absolutamente justa e legítima permitindo validamente pedir alguma coisa a mais que o capital devido pelo empréstimo.”

Uma Instrução Vaticana de 1873 corrobora esta doutrina, ao dizer “1. Falando em geral, deve-se dizer, quanto ao lucro recebido por um empréstimo, que absolutamente nada pode ser recebido em virtude do empréstimo, ou seja, de modo direto e meramente por causa dele.

2. Receber algo a mais do capital é lícito se isso acresce ao empréstimo a título extrínseco, não comumente ligado e inerente ao empréstimo pela natureza do mesmo.

3. Faltando outro título, como, por exemplo, um lucro que acaba, uma perda que se produz, o perigo de perder o capital ou os esforços necessários para reencontrar o capital, o mero título da lei civil pode ser considerado como suficiente na prática, tanto pelos fiéis como por seus confessores, os quais portanto não podem inquietar seus penitentes a este respeito, enquanto esta questão permanece em julgamento e a Santa Sé não a tiver definido explicitamente” (Denzinger-Hunermann 3105-3109)

Além disso, muitas leis civis reconhecem o crime de usura, embora muitas vezes não tenham um claro conceito disso.

“Considerar o juro excessivo como usura é estender esse conceito, relativizando-o”

Juro abusivo sempre foi tido por usurário, mas a Santa Sé afirma a impossibilidade de ditar porcentagem ou limite máximo para todo o globo. A Autoridade Pontíficia reconhece isso ao citar fatores como circunstâncias, pessoas e tempo:

Instrução Vaticana de 1873 ao abordar o título extrínseco na prática católica: “4. A tolerância desta prática não pode ser estendida a ponto de declarar honesto um juro, por menor que seja, quando se trata de pobres, ou um juro desproporcional e excedendo os limites da equidade natural.

5. Finalmente, não é possível determinar de modo universal que quantia de juro deve ser considerada fora de medida e excessiva e qual deve ser considerada justa e moderada, visto que isso deve ser medido para cada caso particular levando em conta todas as circunstâncias de lugar, pessoas e tempo.” (Denzinger-Hunermann 3105-3109).

Código de Direito Canônico (1917, o Pio-Beneditino, Can. 1543) falando do mesmo em outros termos: “Se uma coisa fungível é dada a alguém em propriedade e deve ser devolvida posteriormente no mesmo gênero, nenhum ganho devido ao mesmo contrato pode ser percebido; mas na entrega de uma coisa fungível, não é ilícito em si concordar com um lucro legal, a menos que pareça excessivo, ou mesmo um lucro mais elevado, se um título justo e proporcional puder ser invocado.”.

“Pode-se pedir juros pelo valor do dinheiro no tempo ou por custo de oportunidade”

Este argumento geralmente é levantado por liberais de qualquer espécie. Há séculos foi aventado e repelido por S. Tomás de Aquino: “Mas não pode fazer objeto do contrato a retribuição pelo dano consistente em não auferir lucro do dinheiro; pois, não deve o mutuante vender o que ainda não tem e que pode ser impedido de muitos modos de vir a ter.” (ST II-II, q. 78, a. 2, ad. 1. Tradução: Alexandre Correia)

Inocêncio XI (1679) condenou a proposição também: “41. Dado que o dinheiro à vista tem um valor maior que o dinheiro disponível no futuro e não há ninguém que não atribua valor maior ao dinheiro presente do que ao futuro, o credor pode exigir, daquele que recebeu o empréstimo, alguma coisa a mais que o capital e sob esta alegação ser escusado de usura.” (Denzinger-Hunermann 2141, p. 533).

“O investimento que o banco faz com o meu dinheiro que ali investi não é problema meu”

Ao emprestar ao banco mediante algum tipo de certificado de que não sacará o dinheiro (ainda que legalmente falando o banco possa emprestar seu dinheiro parado), o investidor concorda, tacitamente, com a cultura bancária atual que envolve: 1. Poder pedir além do principal (colateral como casa, carro, etc), o que não é título extrínseco, 2. Emprestar com critério mais financeiro que moral. 3. Não ter escrúpulos em pedir uma taxa de juros abusiva que pode não ser combatida pelo poder público.

Assim, se não é necessariamente usurário, pelo menos não é o melhor investimento.

“Ações são usurárias”

Ações são uma parte da empresa. Quem nelas investe, investe por acreditar naquela empresa (ação é um pedaço dela). A economia verdadeira não olha para relações numéricas e sim para a natureza de cada contrato.

“Ações não são usurárias, mas empréstimos para empresas o são”

Empréstimos para empresas mediante títulos de dívida privada, o que geralmente surgem pelas espécies relacionadas ao prazo, como debêntures e nota promissórias, não são usurários. Justificam-se pelos títulos extrínsecos presentes e por tudo que foi dito antes.

“Não é errado viver de títulos públicos e não é errado ao governo a dívida pública contínua”

A dívida pública serve para saldar o déficit público. Devia ser emergencial meramente.

O venerável Pe. León Dehon (1895) respondia em seu tempo à questão “os empréstimos de anuidades perpétuas são justificados?”:

“- Não. É com razão que economistas sérios veem isso como um ato imoral. Pedir emprestado assim equivale a consumir os recursos do futuro com a fartura do presente. Qualquer dívida pública precisa ter sua amortização ordenada a um prazo que não seja excessivo” (Catéchisme Social, 1895, P. 42)

Nada mais distante da realidade econômica ocidental. Hoje só se fala do que rende cada título. Sendo a dívida não mais emergencial, muitos querem viver às custas do Tesouro Público.

Investir conscientemente em títulos públicos é saber que se empresta ao maior devedor e maior gastador nacional, o qual não raramente muda a perspectiva sobre o que fazer com esse dinheiro a cada eleição.

“Derivativos são usurários”

Instrumento financeiro cujo preço “deriva” de outro (ativo, taxa, índice, etc), eles geralmente, existem para várias finalidades. Para hedge, mecanismo que garante o preço futuro, por exemplo, de uma mercadoria agrícola sujeito a questões climáticas e de safra.

Porém, nota-se o que dizia o Ven. Dehon sobre o mercado à termo, que é bem antigo se se refere a mercadorias (“desde o desenvolvimento do comércio no século XIV”).

Quanto às operações sobre os valores, são estas “que provocam a desastrosa febre do jogo que reina à volta de todas as nossas bolsas e que se propaga até às extremidades das nossas províncias por meio da ação dos financeiros fraudulentos e de reclames enganadores. Para as mercadorias, à parte as operações a prazo que são feitas num fim sério pelos industriais e comerciantes, formou-se um mercado de jogo análogo àquele das bolsas de valores. Este jogo desenfreado mete a confusão no mercado. Certas legislações ou até mesmo os regulamentos de algumas bolsas de comércio puseram ordem nelas e não permitem a não ser que os mercados reais devam terminar por uma entrega de mercadorias.” (Pe. Dehon, Catecismo Social, 1898. C. XV, 4, 187)

Portanto, se se refere a mercadorias, não há o que se falar de ilicitude na compra e venda do produto financeiro em si mesmo.

“O swap, tipo de derivativo, é usurário ou pelo menos mera especulação por ser mera troca de índices financeiros distintos”

Há casos de justa proteção financeira no swap também. Exemplo de proteção cambial: importa-se mercadoria via um contrato com pagamento devido em moeda estrangeira daqui a três meses. Para se proteger contra uma desvalorização da moeda nacional em relação à estrangeira, o importador faz um swap financeiro com um banco.

Ambos concordam em trocar os pagamentos futuros em moedas diferentes: o importador pagará ao banco em moeda nacional a taxa de câmbio atual, e o banco paga ao importador em moeda estrangeira a taxa de câmbio acordada no contrato de swap. Assim, o importador tem mais previsibilidade sobre seus custos em moeda estrangeira e se protege contra possíveis perdas devido à variação cambial.

“Pode-se pôr um bem ou obrigação de fazer ao lado do empréstimo além do título extrínseco, cujo nome mais comum é colateral”

É certamente um dos contratos usurários e dos mais generalizados da modernidade, junto do juro excessivo ou abusivo.

Tomar bem ou vida alheia como forma de garantir o pagamento da dívida é usura, mesmo que não haja taxa de juros previamente acordada, porque o título extrínseco, por ser derivado do dinheiro, precisa ser quantificado em dinheiro.

“Vários clérigos, e dizemos o chorando, também entre aqueles que com voto e hábito se retiraram do presente mundo, enquanto aborrecem as usuras comuns, porque mais manifestamente condenadas, quando emprestam dinheiro aos indigentes tomam como penhor as suas posses e se apropriam dos provenientes frutos para além do capital emprestado.

Por esse motivo, a autoridade do Concílio geral decretou que, de agora em diante, ninguém que se encontra ordenado no clero ouse praticar este ou outro gênero de usura” (Denzinger-Hunermann 747, p. 289. Sínodo de Tours, iniciado 19 mai. 1163, Cap. 2).

No Brasil, atualmente são os equivalentes de garantias reais (as pessoais só enquanto não tornam outro um escravo ou devedor de garantia real)., embora isso possa mudar de nome de tempos em tempos, razão pela qual se exige termo latino.

A base bíblica disso está em Neemias V: “Depois de ter refletido maduramente, repreendi os grandes e os magistrados, dizendo-lhes: Porventura sois usurários para vossos irmãos?”

O que os judeus faziam com seus irmãos em necessidade? Faziam-nos empenhar bens para comprar comida e empenhar bens para tomar emprestado e pagar tributo. Por isso, diz Neemias em seguida: “Restituí-lhes hoje os seus campos, as suas vinhas, os seus olivais e as suas casas”

“A caderneta de poupança ou equivalente é sempre boa”

Tipo de investimento em renda fixa, a caderneta de poupança no Brasil possui vantagens legais, as quais incluem liquidez imediata, ausência de tributos, fundo garantidor de crédito caso o banco quebre (o banco pode quebrar, pois empresta mais do que possui em caixa para certas formas de contas e ganha em cima disso, o que se considera aqui usura).

Para uma análise moral, deve-se saber qual é a legislação vigente para o destino dos recursos da poupança. Se é puro empréstimo ao banco em troca de serviço, cabe a análise moral de como o banco escolhe emprestar. Se há criação monetária via empréstimo do que o banco não tem direito moral de emprestar (pois meramente guarda), é melhor buscar outro meio de poupar para desincentivar a tal criação monetária que a todos afeta se não se sofre exclusão financeira com isso.

A poupança é muito criticada pelo mercado financeiro pela baixa rentabilidade, mas há desconfiança, com razão, de outros produtos bancários, ainda mais sendo a exclusão bancária cada vez pior ao cidadão médio, e os agentes econômicos, cada vez mais dependentes de contas digitais.

Conclusão

Não só as finanças pessoais, como o próprio mercado financeiro perderá muito em qualidade enquanto não houver regulação pautada por princípios atemporais como os católicos. O conceito de usura é, hoje, muito mal compreendido e embolado pelas legislações do passado, já deficientes. Isso só perpetua injustiça e a gangrena na sociedade de que o Marquês Tour-du-Pin falava.

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Todas as citações do Denzinger-Hunermann: Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral da Igreja católica. Traduzido, com base na 40a. edição alemã (2005), aos cuidados de Peter Hünermann, por †José Marino Luz e Johan Konings, Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 2006.